Covid-19 avança em Moçambique

Junho/2020

Em 27 de maio, no congresso virtual da UFBA 2020, foi realizada a mesa internacional Pandemia na África – epidemiologia e algocracia, com a participação de Livio Sansone, Jamile Borges da Silva, Valdemir Donizete Zamparoni, Colin Major Darch, Cardoso Armando, Lamine Badji, Paulo Veríssimo e Teresa Cruz e Silva. Hoje publicamos texto de Cardoso Armando, com os dados atualizados especialmente para o Blog de HCS-Manguinhos.

Cardoso Armando *

Cardoso Armando

O novo coronavírus, com origem na China, aos poucos foi se espalhando para o mundo, tendo em menos tempo afetado o mundo. Moçambique hoje vive o drama desta pandemia, que dia após dia provoca pânico, e por outro lado acentua os níveis cada vez mais altos da pobreza e fome.

O primeiro caso do Covid-19 em Moçambique foi registrado em 22 de março, quando foram testados 46 casos suspeitos. O caso positivo era de um indivíduo que tinha retornado de uma viagem ao Reino Unido em meados de março, e foi considerado, portanto, um caso importado de infecção. Daí em diante os casos de contaminação não pararam de crescer.

Do dia 24 de março até dia 18 de junho, segundo o Ministério da Saúde de Moçambique, foram testados um total de 21.780 casos suspeitos, dos quais 18.738 estão em quarentena domiciliar, 662 confirmados positivos, 21.118 negativos, 175 recuperados e quatro óbitos. A nota preocupante é a rápida propagação de casos no país com maior destaque nos últimos dias para a província de Nampula, considerada a segunda em termos de número de infectados depois de Cabo Delgado, num momento em que o país redobra as medidas de prevenção. De acordo com as autoridades de saúde de Moçambique, a província de Nampula entrou numa fase de transmissão comunitária.

No tocante às medidas de prevenção e mitigação da pandemia, o governo criou em todo o país 15 unidades sanitárias equipadas com 586 camas para o atendimento e internamento dos pacientes do Covid-19, bem como instalação de tendas nas unidades sanitárias que funcionam como “o Cantinho da Tosse e Febre”, considerados os principais sintomas do Covid-19. Cabe realçar que esses esforços se enquadram nas medidas de prevenção. É nestas tendas que os pacientes são encaminhados para medição da temperatura para o rastreio e o despiste de casos do Covid-19. Uma nota importante é de que nestas unidades sanitárias só é permitido o internamento de pacientes considerados graves, aqueles que necessitam de meios auxiliares (aparelhos de respiração). Para os casos considerados leves, os pacientes são encaminhados às suas respectivas residências e o tratamento é domiciliar.

Ainda no pacote destas medidas, constam: a quarentena obrigatória de todas as pessoas que tenham viajado recentemente para fora do país, ou tenham tido contacto com casos suspeitos de Covid-19; proibição da realização de quaisquer eventos públicos ou privados, como cultos religiosos, atividades culturais, recreativas, desportivas, políticas, associativas, turísticas, funerárias, excetuando questões inadiáveis de Estado ou sociais; limitação da entrada de pessoas nas fronteiras terrestres, aeroportos e portos, excetuando-se por razões de interesse do Estado; fechamento dos estabelecimentos comerciais de diversão ou equivalentes; higienização das mãos com água e sabão; uso obrigatório das máscaras em locais de aglomeração (mercados e transportes públicos); e distanciamento social de 1,50 metros entre as pessoas.

A medida restritiva sobre a participação e realização de cerimônias fúnebre provoca descontentamento no seio dos moçambicanos devido ao valor que estas cerimônias têm nas comunidades, uma vez que, conforme escreve Pe. Francisco Lerma Martinez (1999), para o africano a morte não é o fim, mas sim a passagem de um estágio de vida para outro em que o falecido continua vivo junto a comunidade onde sempre pertenceu e esta lhe deve respeito e honras.

Em relação à medida de uso de máscaras em locais de aglomerados públicos, pelo que tenho observado no dia-a-dia na cidade de Nampula, a maior parte da população não usa porque tem consciência da sua importância, mas sim para evitar medidas punitivas das autoridades policiais. Prova disso é que, quando não estão perante as autoridades, não cobrem a boca e o nariz.

Esta realidade de que grande parte dos moçambicanos não usa máscara para se prevenir da doença foi apresentada em um estudo na Conferência Científica sobre a Covid-19 Moçambique, no dia 17/6, em Maputo. O estudo, realizado pelo Centro de Investigação em Saúde da Manhiça, concluiu que 46% usam máscara e 54% não, e baseou-se em observação estruturada, abrangendo 8.761 pessoas de vários pontos do país. Destes, 1.892 cidadãos usam bem a máscara e 2.168 usa mal. E para reverter este cenário, deve haver reforço das mensagens para mudança de comportamento.

Em relação à medida de isolamento social impostas pelo governo, António Prista, professor da Universidade Pedagógica, assegurou que para as pessoas ficarem em casa é necessário salvaguardar alguns aspectos fundamentais como água nas casas, energia, acesso a TICs e rendimento permanente. “E em Moçambique só seis por cento é que têm estas condições”, disse Prista, acrescentando que “não devemos imitar os outros. Devemos olhar para a situação real do país” em que o grosso vive do comércio informal para a sobrevivência.

Na cidade de Nampula, com a rápida propagação de casos, um dos desafios é implementar o plano de ação de controle da prevenção nos mercados, que passa pelo fechamento de alguns mercados e redução do número de vendedores em outros, reforçando as medidas de higiene e de uso de máscaras.

Da análise que faço, olhando para o número total dos testados e dos habitantes de Moçambique, é que de aproximadamente 30 milhões de habitantes, de acordo com os dados do senso da população e habitação de 2017, o número pode não ser real devido à fraca capacidade do governo em testar as pessoas e à pouca preocupação dos governantes em providenciar as infraestruturas sanitárias de qualidade e quantidade. O país conta apenas com um único laboratório situado na capital Maputo. Provavelmente, se a testagem fosse extensiva às províncias, o cenário seria outro.

*Cardoso Armando é doutorando em Estudos Étnicos e Africanos na Universidade Federal da Bahia

Referencia Bibliográfica

Ministério da Saúde. Dados epidemiológicos do COVID 19 em Moçambique. Maputo, março a junho de 2020.

Como citar este post:

ARMANDO, Cardoso. Covid-19 em Moçambique. Blog de HCS-Manguinhos. Publicado em 19 de junho, 2020. Acesso em 19 de junho, 2020. Disponível em  http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/covid-19-avanca-em-mocambique/

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