Agosto/2014
Karina Toledo | Agência Fapesp
Um papel sintético feito de plástico reciclado – resultado de uma pesquisa desenvolvida com apoio da Fapesp – está ajudando a preservar o conhecimento sobre plantas medicinais transmitido oralmente há séculos pelos pajés do povo Huni Kuĩ do rio Jordão, no Acre.
Descrições de 109 espécies usadas na terapêutica indígena, bem como informações sobre a região de ocorrência e as formas de tratamento, foram reunidas no livro Una Isĩ Kayawa, Livro da Cura, produzido pelo Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (IJBRJ) e pela Editora Dantes.
A obra teve uma tiragem de 3 mil exemplares em papel comum, cuchê, voltada ao grande público e lançada recentemente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Outros mil exemplares, destinados exclusivamente aos índios, foram feitos com papel sintético, que é impermeável e tem a textura de papel cuchê, com o intuito de aumentar a durabilidade no ambiente úmido da floresta. O lançamento foi realizado com uma grande festa em uma das aldeias dos Huni Kuĩ do rio Jordão.
O trabalho de pesquisa e organização das informações durou dois anos e meio e foi coordenado pelo botânico Alexandre Quinet, do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. O grande idealizador do projeto, porém, foi o pajé Agostinho Manduca Mateus Ĩka Muru, que morreu pouco tempo antes de a obra ser concluída.
“O pajé Ĩka Muru era um cientista da floresta, observador das plantas. Há mais de 20 anos ele vinha reunindo esse conhecimento até então oral em seus caderninhos. Buscando informações com os mais antigos e transmitindo para os aprendizes de pajé. Ele tinha o sonho de registrar tudo em um livro impresso, como os brancos fazem, e deixar disponível para as gerações futuras”, contou Quinet.
Também conhecidos pelos nomes de “Kaxinawá” – termo que os índios não gostam – , “gente verdadeira” ou “gente do cipó”, os Huni Kuĩ formam o grupo indígena mais numeroso do Acre. Sua presença vai até parte do Peru. No Brasil, somam mais de 7 mil indivíduos, divididos em 12 diferentes terras. O “livro da cura” retrata a terapêutica praticada nas 33 aldeias de uma dessas terras indígenas que se estende pelo rio Jordão.
Além das informações sobre as plantas, a obra apresenta, por meio de relatos e desenhos, um pouco da cultura do povo Huni Kuĩ, como seus hábitos alimentares, suas músicas e suas concepções sobre doença e espiritualidade. Todo o conteúdo está escrito em “hatxa kuĩ” – língua falada nas aldeias do rio Jordão – e traduzido para o português.
De acordo com Quinet, foram feitas cinco viagens à região acreana para a realização da pesquisa, além de quatro períodos de residência de tradutores Huni Kuĩ no Rio de Janeiro.
“Realizamos uma oficina que durou 15 dias e reuniu os 22 pajés das aldeias do rio Jordão. Os capítulos do livro são, na verdade, transcrições literais dos temas abordados por eles, organizados dentro da sistemática indígena. Apenas sofreram revisões para facilitar a compreensão”, contou Quinet.
Das 351 espécies elencadas pelos pajés como medicinais, os pesquisadores coletaram 196 amostras – resultando na seleção das 109 plantas que integram o livro. O material botânico foi identificado de acordo com as técnicas taxonômicas e depositado no herbário do Instituto de Pesquisa do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
A partir do nome científico das espécies, os pesquisadores também levantaram na literatura científica, quando possível, o uso feito por outros povos do mundo. O trabalho contou com a colaboração de 21 taxonomistas de instituições brasileiras e internacionais.
“O objetivo inicial do pajé Ĩka Muru era criar um material de ensino para aprendizes de pajé, visando a facilitar a localização das plantas nos jardins medicinais. Mas o livro também tem o objetivo de difundir a cultura da tribo e a importância de preservar a floresta de forma ampla. Buscaram o Jardim Botânico para que esse conhecimento pudesse ser universalizado dentro de bases científicas”, disse Quinet.
Vitopaper
Para representar o conteúdo escrito em “hatxa kuĩ”, a editora Anna Dantes criou uma fonte tipográfica especial inspirada nas letras manuscritas nos cadernos indígenas. Também foi dela a ideia de produzir uma edição especial em papel sintético.
“Logo na primeira reunião feita com os pajés na floresta eu pude observar que os livros enviados para os povos indígenas sofrem muitos danos por causa da umidade e tornam-se muito perecíveis. As páginas vão entortando e grudando umas nas outras. Também são danificadas pela presença de pequenos animais, como cupins. Era um projeto muito ambicioso, que demandaria um grande esforço, e não poderíamos criar um produto que desapareceria em pouco tempo”, disse Dantes.
Dantes contou que foi a primeira vez que trabalhou com o Vitopaper, material produzido pela empresa Vitopel e originalmente desenvolvido por Sati Manrich, pesquisadora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
“Quando iniciamos o projeto, em 2003, nossa ideia era encontrar uma solução comum a dois grandes problemas: derrubada de árvores para a produção de celulose e a dificuldade de dar um destino adequado ao grande volume de lixo plástico produzido nos centros urbanos”, contou Manrich.
No processo desenvolvido por ela na universidade, o plástico oriundo de embalagens de alimentos, produtos de limpeza ou garrafas de água é higienizado e moído. Recebe, então, a adição de partículas minerais para a obtenção de propriedades ópticas – como brilho, brancura, contraste, dispersão e absorção de luz – e resistência mecânica ao rasgamento, tração e dobras.
A mistura é colocada em uma máquina extrusora a altas temperaturas, onde amolece e se funde. No final, o material transforma-se em uma folha grande fina, semelhante a um papel fabricado com celulose, que é enrolada e cortada de acordo com a aplicação.
Segundo a Vitopel, para cada tonelada de Vitopaper produzido são retiradas das ruas e lixões 750 quilos de resíduos plásticos. Além disso, segundo Manrich, cerca de 30 árvores deixam de ser derrubadas.
“Gostaria que esse exemplo fosse adotado não apenas para imortalizar o conhecimento dos índios como também na produção de livros didáticos, pois eles teriam uma durabilidade muito maior”, afirmou Manrich.
Una Isĩ Kayawa, Livro da Cura
Organizadores: Agostinho Manduca Mateus Ĩka Muru e Alexandre Quinet
Lançamento: 2014
Preço: R$ 120,00
Páginas: 260
Mais informações: www.facebook.com/UnaIsiKayawa?fref=ts.
Fonte: Agência Fapesp
Leia em HCSM
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– Antropóloga defende diálogo para articular medicinas indígenas e sistema de saúde, Entrevista com Luciane Ouriques Ferreira
– O índio na fotografia brasileira: incursões sobre a imagem e o meio, Artigo de Fernando de Tacca, professor da Universidade Estadual de Campinas (v.18 n.1, mar. 2011)