Setembro/2023
Ramon Feliphe Souza
A epidemia de gripe de 1918 é repetidamente destacada na literatura científica como uma das mais letais na história. Embora já exista uma considerável bibliografia sobre o tema no país, pouco se examinou como esse contexto se desdobrou nas regiões interioranas, nos sertões brasileiros.
Era outubro de 1918 quando os jornais de Diamantina, no Norte de Minas Gerais, publicaram as primeiras notícias sobre a epidemia que avançava pelo mundo e já se manifestava em algumas cidades brasileiras. O clima ameno e o isolamento regional foram destacados no discurso oficial como os elementos que garantiriam o abrandamento da doença. No entanto, a epidemia avançou, desorganizou o cotidiano da cidade e fez vítimas. É o que investiga o artigo O trem e a “senhorita espanhola”: a epidemia de gripe em Diamantina, 1918, publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 30, 2023.
O artigo é uma contribuição para a já relevante produção historiográfica brasileira em torno da epidemia de gripe de 1918. Analisa o evento em Diamantina, norte de Minas Gerais, discutindo como o recém-inaugurado ramal ferroviário da Estrada de Ferro Vitória a Minas (1914) contribuiu para a chegada da doença à cidade que, até então, era representada no discurso de suas elites como isolada e salubre. O estudo é resultado de reflexões de pesquisas realizadas durante meu mestrado no Programa de Pós Graduação em História das Ciências e da Saúde, defendido em 2018, com apoio e financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
Num primeiro momento, discuto os debates e as ações para a construção de uma ferrovia em Diamantina, que nos discursos de suas elites foi representada como isolada e abandonada pelas autoridades políticas. Foi no início do século XX, em 1902, que foi aprovada a construção de um ramal ferroviário na cidade, a cargo da Estrada de Ferro Vitória a Minas. O processo não foi tranquilo, uma ferrovia só seria inaugurada em 1914 e com um traçado muito diferente do robusto projeto inicial. Depois de arrolar esse contexto, analiso como, quatro anos após a tão sonhada inauguração da ferrovia, foi exposta a natureza perigosa da reclamada integração regional. Os trilhos da Estrada de Ferro Vitória a Minas e da Central do Brasil – esta última no município vizinho de Curvelo, não trouxeram apenas os efeitos desejados. Impactos ambientais e problemas de saúde pública também foram verificados.
Os discursos de uma Diamantina isolada e salubre foram favorecidos pelo fato do seu território estar circunscrito à Serra do Espinhaço. Na ocasião da epidemia de 1918, no repertório de discursos sobre a cidade esteve a ideia de que, devido às características do ambiente serrano, a sociedade diamantinense sofreria menos com a doença. Isso foi destacado, por exemplo, pelo prefeito de Diamantina, Cosme Alves do Couto, ao jornal A Estrela Pollar:
Parece, Sr., Redator, que o clima de Diamantina é privilegiado contra o terrível mal, que assola em todos os cantos do Brasil, que deveria ser aconselhado pelos médicos para refúgio das pessoas timoratas e até dos convalescentes atacados em outros pontos do país
(A Estrela Polar, 10 de nov. 1918, p. 3).
Porém, apesar da ênfase do discurso oficial de que a salubridade local iria abrandar a epidemia, pouco depois a epidemia desorganizou o cotidiano da cidade e fez vítimas. Além disso, há registros de ocorrências de doenças que incidiam naquela região antes mesmo do episódio epidêmico de 1918. Nesse último momento, especificamente, foi a proximidade do município com a Estrada de Ferro Central do Brasil, na época a ferrovia nacional mais coesa, e que desde 1905 possuía estações no município vizinho de Curvelo, o que tornou inevitável que Diamantina fosse atacada pela doença.
Ao informar sobre os riscos que a ferrovia recém-inaugurada em Diamantina, em 1914, representou diante a epidemia de gripe de 1918, nosso estudo chama atenção para como modernização, mudanças ambientais e proliferação de doenças se entrelaçam. Dessa forma, pertente contribuir com a reflexão sobre como futuras epidemias podem se espalhar.
O estudo mostra ainda como o povo de Diamantina reagiu à epidemia e aponta aspectos dessa sociedade que a gripe de 1918 ajudou a expor, entre eles: a precariedade econômica e sanitária do país e aos efeitos da busca pela modernização republicana amparada por intervenções no meio ambiente a partir da construção de grandes obras de engenharia, como a abertura de ferrovias, por exemplo. Ao lançar luz a história e evolução de aspectos que ainda hoje nos afetam como sociedade, como as condições sanitárias precárias e a devastação sistemática dos biomas do país, nosso estudo pode contribuir na compreensão da conjuntura da pandemia de Covid-19, pois o conhecimento histórico, ao identificar as condições estruturais e culturais do país em cada conjuntura, ajuda a balizar a reflexão sobre em que medida as respostas apresentadas são eficientes.
Leia na revista HCS-Manguinhos:
O trem e a “senhorita espanhola”: a epidemia de gripe em Diamantina, 1918, artigo de Ramon Feliphe Souza (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 30, 2023)