Colônia Juliano Moreira de Bispo do Rosário a Gilmar Ferreira

Dezembro/2025

A produção de dois artistas com trajetórias distintas na antiga Colônia Juliano Moreira no Rio de Janeiro – Arthur Bispo do Rosário (1909 ou 1911–1989), mundialmente reconhecido por suas obras, e Gilmar Ferreira (1966), que iniciou seu tratamento em 1986 e é usuário da rede de saúde mental – é o tema de uma análise publicada na atual edição da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v. 32, 2025).

No artigo A Colônia Juliano Moreira de Bispo do Rosário revivida na obra de Gilmar Ferreira, Andrea Maia Gonçalves Pires, doutoranda do Programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimônio da UniRio, em parceria com o Museu de Astronomia e Ciências Afins (Mast/MCTIC), e Priscila Faulhaber Barbosa, professora do programa e pesquisadora titular do Mast, analisam os processos de mudanças na colônia, que passou de um local de confinamento para um espaço de criação artística, com o estabelecimento de um museu de Arte Contemporânea e a criação do Ateliê Gaia, consolidando seu papel como lugar de expressão artística.

As autoras analisam dois momentos cruciais na história da Colônia Juliano Moreira, envolvendo pessoas que foram internadas no antigo manicômio. O primeiro, que vai de 1930 a 1980, foca na obra de Arthur Bispo do Rosário, cujas criações, desenvolvidas no confinamento manicomial, emergiram como formas de superação e se tornaram marcos na história da arte brasileira, influenciando artistas como Gilmar Ferreira, que interpretou obras do primeiro. No segundo momento, a partir do final da década de 1980, as obras de Gilmar Ferreira refletem as mudanças trazidas pela reforma psiquiátrica brasileira. Esse período foi marcado pelo fortalecimento das atividades do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea (MBRAC) e pela criação do Ateliê Gaia, ambos fundamentais, segundo as autoras, para a redução do estigma relacionado à loucura.

As pesquisadoras analisaram como o ambiente manicomial influenciou as criações artísticas de Bispo e como as mudanças institucionais afetaram a estética e os métodos de criação de Ferreira. Elas observaram como momentos-chave na vida de cada um, como a internação, as abordagens terapêuticas, a produção artística e o reconhecimento de suas obras, ressaltam as diferentes perspectivas dos períodos históricos em que viveram na Colônia Juliano Moreira. 

A pesquisa documental abrangeu o arquivos da Colônia, o acervo do Museu e os prontuários dos pacientes armazenados no Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira (IMASJM), sob a responsabilidade da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Além disso, textos psiquiátricos da época contribuíram para compreender a rotina hospitalar e os procedimentos terapêuticos no contexto histórico e cultural.

“O estudo inova ao demonstrar como a arte se tornou um meio de expressão em diferentes contextos institucionais, antes e depois da reforma psiquiátrica”, afirmam as autoras. Segundo elas, a pesquisa revelou que as atividades de Ferreira, como sua produção artística, participação em exposições e envolvimento com o MBRAC, além da venda de suas obras, contribuíram para reverter os estigmas associados às doenças mentais, promovendo sua autonomia e socialização.

Cinquenta anos de internação: arte para subverter opressão

Durante sua internação, de 1939 a 1989, Bispo do Rosário esteve sob práticas disciplinares rigorosas, mas subverteu esse poder ao transformar seu quarto em um ateliê, retratando o mundo que vivia e seu repertório cultural. Por meio de sua arte, subvertia o controle institucional, criando significados em um ambiente de opressão. Suas obras, muitas vezes compostas por objetos cotidianos, simbolizavam a rejeição da ordem estabelecida e a afirmação de sua identidade como criador. Segundo as pesquisadoras, esse processo criativo, além de ser uma resposta ao confinamento, reinventa a narrativa da loucura, abrindo espaço para uma compreensão mais ampla sobre o papel da arte em contextos de opressão.

Exposições e atividades educativas

Atualmente, Gilmar Ferreira, artista plástico reconhecido, participa ativamente de exposições, concepção museográfica e atividades educativas, contrastando com o isolamento vivido por Bispo. Suas obras mantêm viva a memória de Bispo, demonstrando que os usuários de saúde mental podem trilhar novos caminhos artísticos e profissionais.

Atividade na exposição de Gilmar Ferreira sobre reciclagem, 2007

A pesquisa busca contribuir para reflexões sobre as consequências das mudanças nos saberes relacionados aos portadores de sofrimento psíquico e nas práticas terapêuticas voltadas para suas produções artísticas. Segundo as autoras, as mudanças no IMASJM, incluindo o encerramento das internações psiquiátricas no Núcleo Franco da Rocha em 2022, marcam um ponto importante na luta antimanicomial no Brasil. 

Leia na revista HCS-Manguinhos:

A Colônia Juliano Moreira de Bispo do Rosário revivida na obra de Gilmar Ferreira, artigo de Andrea Maia Gonçalves Pires e Priscila Faulhaber Barbosa (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 32, 2025)