Outubro/2013
Luciana de Fátima Cândido | Brasiliana USP
Não restam dúvidas que 1808 foi um ano importante para o Brasil também no que diz respeito às ciências naturais e artísticas: assistimos ao que podemos chamar de redescobrimento da flora brasileira. Com a chegada da corte de D. João VI ao Rio de Janeiro e a abertura dos portos às nações amigas as restrições à entrada e permanência de estrangeiros na colônia foram revogadas. Em 1817, desembarcou no Brasil a arquiduquesa da Áustria, Maria Leopoldina, recém-casada com o príncipe do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, Pedro de Alcântara e, com ela, vieram cientistas, botânicos, zoólogos e artistas europeus que integravam a Missão Científica de História Natural. Esta Missão Austríaca, como ficou conhecida, financiou estudiosos das mais variadas ciências, como os artistas Johann Buchberger, Franz Frühbeck, Benjamin Mary e Thomas Ender, o litógrafo Johann J. Steinmann, o taxidermista Domenico Sochor, os zoólogos Johann B. von Spix e Johann Natterer, os botânicos Carl Friedrich Ph. von Martius, Johann Sebastian Mikan e Johann Emmanuel Pohl e o fotógrafo George Leuzinger.
Dessa missão resultaram notáveis obras científicas e belíssimas produções artísticas. A obra Reise in Brasilien, organizada por Carl Fr. Ph. von Martius e Johann B. von Spix, constitui um dos mais importantes relatos de viagem editados sobre o Brasil. Publicada em 3 volumes (1823, 1828 e 1831), foi resultado de quase quatro anos de viagem em que Martius e Spix percorreram o interior do Brasil por cerca de 10.000 km. A viagem teve seu ponto de partida no Rio de Janeiro e seguiu posteriormente para São Paulo e Minas Gerais, subindo o rio São Francisco até os limites de Goiás. De lá, rumaram para Bahia, Pernambuco, Piauí e Maranhão. Seguiram, por fim, para Belém do Pará, terminando a viagem em Santarém.
A monumental Flora brasiliensis (1840-1906), editada por von Martius, August Wilhelm Eichler e Ignatz Urban, também foi fruto dessa viagem. Ela foi patrocinada por três monarcas – o Imperador do Brasil, o Rei da Baviera e o Imperador da Áustria – e contou com a colaboração de 65 especialistas de vários países. Permanece como a obra mais completa sobre a flora brasileira e foi a base para a sistematização da Botânica atual. Organizada em 15 volumes, compostos de 40 tomos e subdivididos em 140 fascículos individuais, descreveu 22.767 espécies, das quais 19.698 eram nativas e 5.689 desconhecidas pela ciência.
Carl Friedrich Philipp von Martius (1794-1868) nasceu em Erlangen e faleceu em Munique, ambas cidades da Alemanha. Em 1810 iniciou o curso de medicina na Universidade de Erlangen e lá teve contanto com disciplinas do campo da botânica. Teve aula com Johann C. D. von Schreber, botânico que havia sido aluno de Carolus Linnaeus. Após doutorar-se em 1814, seguiu para Munique e tornou-se assistente do botânico Franz von Paula Schranck. Realizaram, juntos, diversas expedições científicas nas imediações e Martius foi nomeado membro adjunto da Academia Real de Ciências em 1816. Essas expedições renderam-lhe as primeiras publicações acadêmicas sobre botânica. No ano de 1817, com financiamento do rei Maximiliano I e sob a coordenação de Johann B. von Spix, Martius segue para o Brasil como integrante da Missão Austríaca. Chegaram no Rio de Janeiro em julho e por quase quatro anos exploraram a maior parte do Brasil, percorrendo seus diversos biomas. Dessa expedição resultou a primeira divisão fitogeográfica do Brasil organizada por Martius, que dividia o território em cinco regiões florísticas: Nayades (flora amazônica), Hamadryades (flora nordestina), Oreades (flora centro-oeste), Dryades (flora da costa atlântica) e Napeias (flora subtropical). [Flora brasiliensis, vol.XXI]
Retornando a Munique em 1821, Martius começou a sistematizar os resultados dessa expedição. Publica Nova genera et species plantarum, quas in itinere per Brasiliam (1824-1832) em 3 volumes, Icones selectae plantarum cryptogamicarum (1827), Historia naturalis palmarum (1823-1850) em 3 volumes com 135 ilustrações, e Systema materiae medicae vegetabilis brasiliensis (1843). Publicou também ensaios sobre a economia, a medicina e a cultura brasileira.
O “velho mundo” interessava-se por lugares repletos de singularidades naturais, sociais e antropológicas, e a literatura de viagem foi um importante veículo de comunicação e propagação das imagens desses habitats desconhecidos. As diversas iconografias revelaram a beleza e a singularidade do interior do Brasil desvendado pelo explorador e tornaram visíveis as peculiaridades de um “novo mundo”, detentor de um verdadeiro tesouro botânico e zoológico. Após a abertura dos portos, a exuberância da natureza tropical impressionou a todos que aportaram no Brasil: “Não menos extraordinário que o reino das plantas é o dos animais que habitam as matas virgens. O naturalista para aí transportado pela primeira vez, não sabe o que mais admirar, se as formas, os coloridos, ou as vozes dos animais”, registram Spix e Martius [Viagem pelo Brasil, vol.I, 1823, p.95].
Carl Friedrich von Martius foi o cientista que mais contribuiu com as descrições taxonômicas de diversas espécies brasileiras, utilizando litografias de altíssima qualidade que são de grande valia para a identificação das mesmas. Disponibilizamos aqui obras que versam sobre a fauna, a flora, a política, a cultura e a medicina brasileira, textos e ilustrações que são utilizadas por pesquisadores do mundo todo devido ao seu alto valor histórico e biológico e as suas múltiplas intersecções disciplinares.
Leia mais
Leia também o artigo “História e natureza em von Martius: esquadrinhando o Brasil para construir a nação”, de Manoel Luiz Salgado Guimarães
Leia também:
Sob o olhar dos viajantes – Reportagem na Revista de História aborda série de TV que volta aos tempos do Brasil Colônia e reconstrói imagem do país cultivada por visitantes que passaram por aqui. Produção também conta com depoimentos atuais de historiadores e sociólogos