Bruno Leal: ‘Regulamentar uma profissão é reconhecer sua importância na sociedade’

Maio/2020

Bruno Leal. Foto de Daniel Carvalho.

Editor do maior portal brasileiro de divulgação científica de história, o Café História, e professor adjunto de História Contemporânea do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília (UnB), Bruno Leal é um defensor da regulamentação da profissão de historiador, pauta antiga dos profissionais da área.

Nesta entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos, ele fala dos prós e contras do projeto de lei 368/2009, recentemente vetado pelo presidente Jair Bolsonaro, e o que pode ser feito no sentido da regulamentação agora. Leal também aborda os avanços da história pública e da divulgação científica em história. 

Desde a década de 1960 os historiadores reivindicam o seu reconhecimento profissional. Quais benefícios a regulamentação poderia trazer?

A regulamentação da profissão de historiador, como tantas outras regulamentações profissionais, tem tudo para gerar uma série de benefícios, e isso nos ajuda a entender, ao menos em parte, porque se trata de uma pauta tão antiga e tão desejada pelos historiadores.

Em primeiro lugar, no plano simbólico, regulamentar uma profissão é reconhecer a sua importância dentro da sociedade. Não que determinados ofícios dependam da regulamentação para gozar de prestígio social, mas a regulamentação é um gesto que reforça o valor que se atribui a essa profissão.

Em segundo lugar, podemos falar dos benefícios práticos – e eles são, potencialmente, muitos. Acredita-se que a regulamentação da profissão pode gerar mais empregos, proteger aqueles historiadores que já estão empregados, mas que na carteira de trabalho são “assistentes disso” ou “auxiliares daquilo”, e coibir desvios de função. Além disso, a regulamentação tem tudo para aumentar a segurança jurídica dos profissionais que atuam na área, estabelecer tetos salariais justos, atrair novos talentos e fortalecer associações de classe.

Em terceiro lugar, a regulamentação é positiva na medida em que ela vai incluir muitos profissionais da área da educação que já dão aulas de história, mas que por serem formados em outras licenciaturas, como sociologia ou filosofia, por exemplo, não são considerados historiadores.

Há muitas diferenças entre o projeto de lei 368/2009, recentemente vetado por Bolsonaro, e os apresentados anteriormente? Qual a maior diferença?

Há muitas diferenças, e isso é normal. Um projeto de lei sempre começa de uma forma e termina de outro, pois ele é produto de muitos debates no parlamento. Eu vou focar numa diferença que, para mim, é a mais importante. No projeto original, de 2009, o texto preconizava que somente poderiam ser reconhecidos como historiadores aqueles com um diploma em história (graduação, mestrado ou doutorado), o que deixava os historiadores da ciência e da educação, por exemplo, que podem e geralmente são formados em outras áreas, em situação muito complicada. Isso não foi legal e deu margem a acusações de reserva de mercado, mesmo que não tenha sido essa a ideia do texto. Na versão atual, isso mudou. O projeto recentemente vetado pelo presidente Bolsonaro estabelece que poderá ser considerado historiador quem tem diploma de curso superior, mestrado ou doutorado em História; diploma de mestrado ou doutorado obtido em programa de pós-graduação reconhecido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) com linha de pesquisa dedicada à História; e profissionais diplomados em outras áreas que comprovarem ter exercido a profissão de historiador por mais de cinco anos a contar da data da promulgação da futura lei. Ou seja, este projeto mais recente é muito mais generoso, corrigindo algumas injustiças.

Porém, e essa é a minha avaliação, essa abrangência traz um risco. Ao incluir “profissionais diplomados em outras áreas que comprovarem ter exercido a profissão de historiador por mais de cinco anos”, o projeto de lei pode permitir que grupos negacionistas, por exemplo, sejam chancelados como historiadores profissionais. Há quem argumente que esses grupos negacionistas, ou qualquer outro grupo/indivíduo mal intencionado, não depende da regulamentação para continuar produzindo e colocando o seu material em circulação social. Eu concordo com isso, mas a regulamentação pode facilitar ainda mais as coisas para eles. Não acho que isso invalide o projeto, mas precisamos estar preparados para lidar com esse efeito colateral.

Como editor do maior portal brasileiro de divulgação científica de história, o Café História, você acredita que a regulamentação poderia contribuir para as atividades de divulgação? E para a história pública?

A regulamentação tende a contribuir com todas as atividades do ofício do historiador. Então, a resposta é sim. Não sei dizer ao certo como isso aconteceria na prática, se seria uma coisa evidente e rápida, ou se é algo que ocorreria de forma difusa e lentamente. Mas é muito provável que o reforço do reconhecimento social advindo da regulamentação dê mais visibilidade o trabalho do historiador-divulgador, assim como é possível que a regulamentação favoreça o surgimento de novos postos de trabalho em instituições públicas e privadas. Espero saber em breve quais são os efeitos da regulamentação nos campos da divulgação e da história pública. Mas, eu diria que a regulamentação não é um elemento decisivo para o futuro da divulgação científica de história (tipo específico de divulgação de história que eu defendo) e da história pública.

Ainda no século XIX, muito antes, portanto, da história se tornar uma disciplina universitária, o que só vai acontecer na década de 1930, os intelectuais então reconhecidos como historiadores já divulgavam seus textos na imprensa, em livros, panfletos, conferências etc. O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) pode ser pensado como um espaço fundamental para a divulgação de história nos oitocentos, ainda que em termos diferentes dos atuais. Ou seja, o sucesso da divulgação da história e de suas expressões no meio público não depende da regulamentação da atividade historiadora, embora esta possa potencializá-las. Ao meu ver, a maior contribuição para a divulgação cientifica da história e da história pública produzida no país já está sendo feita: a incorporação deste debate e deste saber fazer no âmbito universitário e escolar.

É cada vez maior o número de disciplinas voltadas para a popularização de história nos currículos universitários de história. A Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) criou recentemente um bacharelado em História Pública, enquanto que a Universidade Estadual do Paraná (Unespar) criou o primeiro mestrado acadêmico nesta mesma área. Isso, pra mim, é muito mais decisivo. Precisamos encarar a divulgação cada vez mais como uma dimensão do trabalho do historiador, ao lado do ensino e da pesquisa. E isso se faz menos com a regulamentação e mais com a mudança de nossa cultura acadêmica e escolar.

O que pode ser feito agora no sentido da regulamentação da profissão?

A sociedade civil está se mobilizando da maneira que pode e com os recursos que estão ao seu alcance. Há algumas petições e abaixo-assinados circulando na internet. Eu mesmo assinei. Parlamentares de várias legendas protestaram – vale lembrar que antes de seguir para a sanção presidencial, o projeto de lei foi votado em unanimidade pelo Senado. A Associação Nacional de História (Anpuh) também tem feito um grande esforço para reverter o cenário.

Mas é difícil dizer o que acontece agora. Em termos oficiais, cabe ao legislativo analisar o veto de Bolsonaro em sessão conjunta do Congresso. Ainda não há data marcada.​ É muito possível que a regulamentação, uma vez mais, permaneça em suspenso, haja vista que vivemos uma crise global de saúde pública e uma crise política e econômica sem precedentes, de forma que essa pauta, tão importante para os profissionais de história, não é atualmente prioridade em Brasília. Cabe a nós mantê-la viva.

Como citar este post:

Bruno Leal: ‘Regulamentar uma profissão é reconhecer sua importância na sociedade’. Entrevista com Bruno Leal. Blog de HCS-Manguinhos. Publicado em 25/05/2020. Visualizado em 26/05/2020. Disponível em: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/bruno-leal-regulamentar-uma-profissao-e-reconhecer-sua-importancia-na-sociedade/

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