Agosto/2023
Desde a chegada dos europeus à Amazônia, em especial, de missionários, exploradores e viajantes, os usos e significados da ayahuasca por indígenas são relatados de maneira deturpada, e assim também foram transmitidos aos primeiros pesquisadores do tema já no início do século XX. Dentre eles, psiquiatras eugenistas que procuravam controlar mentes e corpos de pessoas com distúrbios psicossociais e pesquisadores da indústria farmacêutica que tinham interesses comerciais.
No artigo Relatos de exploradores e viajantes e primeiras pesquisas científicas com a ayahuasca, 1850-1950, no debate atual sobre o “renascimento psicodélico”, publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v. 30, 2023), Vinícius Maurício de Lima e Maria Gabriela Silva Martins da Cunha Marinho, respectivamente doutorando e professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC (UFABC), debatem as expedições pioneiras à Amazônia no século 19, os diferentes usos da ayahuasca e o interesse farmacêutico no tema.
O artigo aborda as controvérsias entre os usos indígenas e ocidentais da ayahuasca – beberagem utilizada por grupos indígenas, por religiões fundadas no Norte do país e outras instituições – e a sua relação com o chamado “renascimento psicodélico” dos anos 1960 e 1970. Os autores também discutem como o avanço do negacionismo científico e de pautas políticas conservadoras se relacionam com a criminalização dos usos rituais e as políticas antidrogas.
Em diversos países, estão em curso estudos de destaque sobre os usos terapêuticos de substâncias psicoativas. Em maio de 2021, o periódico Nature Medicine publicou resultados preliminares de uma pesquisa clínica, realizada nos Estados Unidos, que mostram o MDMA, princípio ativo do ecstasy, favorável no tratamento do estresse pós-traumático entre ex-combatentes de guerra.
Vinícius Maurício de Lima explica que o boom de pesquisas sobre o potencial terapêutico de substâncias psicoativas evidencia um “renascimento psicodélico” na ciência mundial. O Brasil é pioneiro nesse campo devido aos estudos com ayahuasca. O autor lembra que nas décadas de 1960 e 1970 diversas pesquisas eram realizadas com substâncias psicoativas como o LSD. Porém, com a instituição de políticas antidrogas por países como os Estados Unidos e o Brasil, em consonância com diretrizes da Organização das Nações Unidas (ONU), as pesquisas sobre potenciais terapêuticos dessas substâncias – então classificadas como “drogas” – foram suspensas, sendo retomadas apenas nos anos 1990.
“Tivemos um hiato de cerca de 20 anos e hoje o cenário parece mais favorável ao desenvolvimento de pesquisas com substâncias psicoativas, mas continuamos enfrentando incompreensões históricas. Com respeito à ayahuasca, ainda há um estigma relacionado aos seus usos religiosos, que se intensificaram com a expansão, a partir dos anos 1980, de religiões como o Santo Daime e a União do Vegetal. Mas as incompreensões vêm de antes, com a criminalização dos usos e significados indígenas”, afirma o pesquisador.
“Em nosso país, desde a regulamentação dos usos religiosos e científicos da ayahuasca, em 2010, cresce o número de estudos sobre os potenciais terapêuticos dessa beberagem, por exemplo, no tratamento da depressão, considerado o mal do século XXI pela Organização Mundial da Saúde. No entanto, os usos terapêuticos da ayahuasca ainda não estão regulamentados”, observa o cientista social.
Ele acredita que o aspecto histórico do “renascimento psicodélico” pode trazer elementos para uma discussão mais democrática frente ao avanço do negacionismo científico e de uma agenda conservadora no mundo. Em 2019, o governo brasileiro excluiu entidades científicas, de profissionais e da sociedade civil do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (Conad), sendo criticado por instituições como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que mantinham assento no órgão governamental no qual procuravam debater o uso de substâncias psicoativas por meio de informações técnicas e de pesquisas. Segundo o pesquisador, o “renascimento psicodélico” poderia, inclusive, revolucionar a psiquiatria.
“Devemos estar vigilantes para evitar retrocessos e assegurar que continuem avançando os estudos sobre os potenciais terapêuticos de substâncias psicoativas em áreas como a psiquiatria. Contudo, o histórico da ayahuasca mostra que, dentro disso, precisamos enfrentar, na academia e na sociedade, o estigma e a criminalização dos usos indígenas e religiosos e discutir com os interessados, em especial os grupos tradicionais, os usos terapêuticos dessa beberagem e seus desdobramentos sociais, científicos e econômicos”, conclui.
(Atualizado em 24/8/2023)
Leia na revista HCS-Manguinhos:
Relatos de exploradores e viajantes e primeiras pesquisas científicas com a ayahuasca, 1850-1950, no debate atual sobre o “renascimento psicodélico”, artigo de Vinícius Maurício de Lima e Maria Gabriela Silva Martins da Cunha Marinho (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 30, 2023)