As sentinelas das panzootias

Maio/2025

Matheus Alves Duarte da Silva* | Especial para o Blog de HCS-Manguinhos

No dia 15 de maio de 2023, o Ministério da Agricultura notificava a Organização Mundial de Saúde Animal (OMSA) da primeira identificação do vírus da influenza aviária H5N1 de alta patogenicidade (IAAP) no Brasil, em dois trinta-réis de bando e um atobá-pardo, aves migratórias, encontradas debilitadas na costa do Espírito Santo. 1 O Brasil se juntava então a um crescente número de países onde o vírus havia sido identificado entre aves e mamíferos silvestres, o que demonstra que uma panzootia de gripe pode estar ocorrendo ao redor do globo. 2

Aves em granja comercial. Arquivo/Agência Brasil.

Exatos dois anos depois, era anunciada a primeira detecção do mesmo vírus em aves comerciais em Montenegro, no Rio Grande do Sul. 3 Esta descoberta produziu alarmes dentro e fora do Brasil, causou perdas econômicas para a agropecuária nacional e gerou apreensão na população sobre a possibilidade (baixa, mas não impossível) de contaminação humana. No entanto, a presença da gripe aviária em animais silvestres nos últimos dois anos pouco repercutiu na imprensa e sociedade brasileira.

Nota-se, assim, uma hierarquia: animais doentes importam na medida em que podem afetar humanos, econômica ou sanitariamente. Por exemplo, pouco ou nada se fala atualmente sobre a possibilidade de a gripe aviária em fazendas introduzir o vírus em populações de aves e outros animais silvestres brasileiros.

Dentro do paradigma das doenças infecciosas emergentes, este risco parece quase impensável, pois o que se teme é que doenças saltem de animais selvagens, mas nunca que animais selvagens possam ser contaminados com doenças vindas de centros urbanos. 4

Porém, um hipotético espraiamento da gripe aviária entre animais silvestres no Brasil teria um paralelo histórico: ao longo do século XX, a peste bubônica pouco a pouco migrou de ratos em centros urbanos para roedores selvagens no interior do Brasil, entre os quais ela ainda circula em alguns focos no Nordeste. 5

Assim, se a detecção da gripe aviária em fazendas comerciais no Brasil soou um legítimo alarme para os humanos, ela também anuncia o risco de uma panzootia de gripe entre animais silvestres no país. Porém, para ouvirmos esse segundo alarme, precisamos reconhecer que os animais selvagens também têm direito a existir e de maneira saudável, e que, portanto, se faz necessário expandir as redes de vigilância epidemiológica no Brasil. Mas, talvez, para ouvirmos as sentinelas das panzootias devamos primeiro repensar o antropocentrismo da cosmologia moderna.

*Matheus Alves Duarte da Silva é pesquisador de pós-doutorado no Departamento de Antropologia Social da Universidade de St. Andrews, Reino Unido.

Referências:

1. Nota técnica n. 11/2023/DSA/SDA/MAPA. Detecção da infecção pelo vírus da influenza aviária H5N1 em aves silvestres no estado do Espírito Santo, Brasil. https://www.agricultura.rs.gov.br/upload/arquivos/202305/16091258-h5n1-brasil-port-eng-esp.pdf

2. Policy paper. Avian influenza (bird flu): infection in wild birds and wild mammals Department for Environment, Food & Rural Affairs / Animal & Plant Health Agency, governo do Reino Unido, 19/10/2023. https://www.gov.uk/government/publications/avian-influenza-bird-flu-infection-in-wild-birds-and-wild-mammals/avian-influenza-bird-flu-infection-in-wild-birds-and-wild-mammals

3. Comunicado técnico. Brasil registra o primeiro caso de influenza aviária em granja comercial. Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil https://www.cnabrasil.org.br/publicacoes/brasil-registra-o-primeiro-caso-de-influenza-aviaria-em-granja-comercial

4. Matheus Alves Duarte da Silva e Jules Skotnes-Brown, Emerging Infectious Diseases and Disease Emergence: Critical, Ontological and Epistemological Approaches, Isis 114, n. S1, 02/09/2023:
S26–49, https://doi.org/10.1086/726979.

5. Brasil. Ministério da Saúde, Manual de vigilância e controle da peste, 1a edição (Brasília, DF: Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância Epidemiológica, 2008); Matheus Alves Duarte da Silva, From Universal Rats to Future Jungle Foci: Actors and Places of Plague in Brazil (1899–1940s), in Empire, Nation-Building, and the Age of Tropical Medicine, 1885–1960, ed. Mauro Capocci and Daniele Cozzoli, Medicine and Biomedical Sciences in Modern History (Cham: Springer International Publishing, 2024), 161–80, https://doi.org/10.1007/978-3-031-38805-7_7.

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