As obsessões antes de Freud

Janeiro/2015

Vivian Mannheimer | Blog de HCS-Manguinhos

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Rafael Huertas

O que mudou com Sigmund Freud em relação ao conceito de obsessão e à importância das crenças religiosas na compreensão dos sintomas obsessivos é o tema do historiador espanhol Rafael Huertas no artigo Las obsesiones antes de Freud: historia y clínica (Obsessões antes de Freud: história e clínicas),  publicado na última edição de História, Ciências, Saúde – Manguinhos (vol. 21, n. 4, out/dez 2014). O assunto também pauta esta entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos.
 
Como o conceito de “obsessão” foi entendido antes de Freud e o que mudou com ele?

Antes da obra de Freud, obsessões eram uma coleção heterogênea de sinais, características e sintomas, que partiam do conceito de monomania e acabaram sendo entendidas no contexto do degeneracionismo. Embora este tipo de condições clínicas tenha resultado em descrições muito precisas, as obsessões propriamente ditas acabaram sendo agrupadas com fobias, estados de ansiedade, tiques e mesmo alguns estados hipocondríacos que, em geral, eram entendidos em suas correlações orgânicas, como resultado de alterações singulares ou “anatomoclínicas”, como por exemplo, o automatismo medular.

A obra de Freud propõe um questionamento sobre o organicismo que caracteriza a psiquiatria positivista e, acima de tudo, sugere uma maneira diferente de organizar e definir esse tipo de transtorno. Com a psicanálise, as obsessões se separam da neurastenia e de condições degenerativas, assim como de fobias e neuroses de angústia, sendo interpretada a partir de uma concepção dinâmica. Isto, obviamente, era uma grande novidade a partir do ponto de vista da nosografia psicopatológica.

O que significou a substituição do termo “neurose obsessiva” por “transtorno obsessivo-compulsivo” (TOC), freqüentemente utilizado a partir de 1970?

Para a psicanálise, a neurose obsessiva não se limita a um tipo de alteração mental, mas se caracteriza como uma estrutura ou forma de funcionamento psíquico. No entanto, a concepção psicopatológica atualmente promovida pelo Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, na sigla em inglês) sob o nome de transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) envolve a definição de uma doença em particular (um tipo de alteração mental) que tem causa orgânica e tratamento médico. Atualmente, sua etiologia é relacionada com transtornos anatômicos ou fisiológicos/bioquímicos do cérebro, exigindo terapias cognitivo-comportamentais, farmacológicas ou mesmo cirúrgicas. Esta orientação, tão claramente biologicista e medicalizada, deslocou não só as abordagens psicoanalíticas, mas também o interesse e as pesquisas sobre aspectos biográficos e culturais, como o ambiente familiar, a educação, os sistemas de valores etc, para a compreensão da sintomas obsessivos.

Qual a importância das crenças religiosas na compreensão sintomas obsessivos?

São muito importantes. Desde os tempos antigos, as obsessões são associadas a conflitos internos que tinham a ver com a culpa, a resistência à tentação e ao pecado, no contexto cultural do Ocidente cristão. Do ponto de vista etimológico, diferenciou-se “possessão” e “obsessão”. Na “possessão” o sujeito não estaria ciente de sua situação, porque estaria “possuído” pelo demônio. Na “obsessão”, o sujeito estaria consciente de seus atos, sentindo-se “assediado” pelo diabo, e “resistindo” com todas as suas forças, o que resultaria nos escrúpulos religiosos e numa série de rituais “de proteção” desencadeadores de sintomas compulsivos. Esta relação entre escrúpulos e sentimento religioso, com todo o seu peso cultural, foi bem identificado pelos analistas do século XIX, que descreveram quadros obsessivos de dúvida, medo, culpa e desespero, ligados, num primeiro momento, à melancolia. Assim, a noção de escrúpulo religioso foi incorporada ao pensamento médico e psicológico sobre obsessões. Até hoje são descritos casos de TOC cujos sintomas têm um componente religioso, o que demonstra a enorme influência cultural das crenças religiosas.

Leia o artigo em espanhol em HCS-Manguinhos:

Las obsesiones antes de Freud: historia y clínica. Artigo de Rafael Huertas (vol.21, n.4, out./dez. 2014).

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