As incertezas e perplexidades da racionalidade histórica em tempos de pandemia

Julho/2020

Sandro Dutra e Silva *

Sandro Dutra e Silva

As ciências humanas desempenham um papel fundamental no estudo das coletividades, na medida em elas se propõem a conhecer, refletir, estabelecer explicações e teorias sobre a vida social. As observações e experimentações das humanidades ocorrem nesse grande laboratório[1] coletivo, no qual o mundo social e seus dilemas estão dispostos para o exercício do conhecimento. O labor científico das humanidades, rotineira e constantemente, se presta ao estabelecimento de teorias, que buscam se firmarem como verossímeis e pertinentes[2]. Uma teoria pertinente é aquela que, de forma bem sucedida, consegue descrever os fenômenos sociais de um determinado domínio, estabelecer conceitos e novas predições, referendadas nas práticas da observação e do controle dos experimentos, que auxiliam na validação ou refutação de hipóteses. Nesse grande laboratório humano precisamos lidar – logo e sempre – com incertezas. No caso especial das humanidades, muitas incertezas são residuais e irrisórias. Outras, abundantes e graves. Porém, todas essas incertezas apoiam-se em construtos acumulados pela aventura histórica do conhecimento.

Rüsen nos ensina que a razão histórica serve para ampliar nossa compreensão acerca da cultura histórica, que está sempre disposta à experiência: “pela sensibilidade estética, pela reflexão política e pelas fundamentações discursivas”[3]. Por sua vez, Peter Burke nos aconselhou que a capacidade de propor novas questões é a grande contribuição da racionalidade histórica, sobretudo aos historiadores que tem interrogado sobre o seu próprio tempo. A racionalidade histórica tem ainda, a função de propor novas respostas para as perguntas já bastante conhecidas[4]. Todos esses pressupostos são, de fato, intelectualmente e objetivamente pertinentes para nós historiadores. Todavia, em tempos de pandemia, de que forma esses pressupostos podem nos auxiliar a refletir sobre a nossa prática e o nosso ofício?

Do ponto de vista epistemológico, os momentos de distanciamento social foram e são tempos de incertezas e perplexidades – e possibilidades. Faço uso do termo “perplexidade” no sentido proposto Santos[5], entendido como a agitação produtiva frente ao desconhecido. Uma perplexidade inquieta e que não se contenta com a razão indolente e pusilânime em relação às incertezas. Assim, desde que Tedros Adhanom, diretor geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), declarou o estado de pandemia em 11 de março de 2020, temos vivido um festival de perplexidades (indolentes ou inquietas) nesse grande laboratório de incertezas. Perplexidades, contradições e confusões históricas, por vezes remotas e/ou adjacentes à pandemia.

O olhar atento do historiador perceberá esse cenário de incertezas e confusões. Sem muito esforço, podemos considerar que a pandemia tem reforçado um quadro político em que as perplexidades e incertezas parecerem ter fugido dos preceitos básicos da sensatez. No caso brasileiro, a pandemia exaltou confusões históricas adjacentes que reforçam a sensação de que estamos em meio a uma tempestade de estultices. Um dado óbvio e alarmante são as estatísticas de óbitos e contaminação pelo COVID-19, em meio a uma crise política grotesca. Durante os primeiros meses da pandemia, por exemplo, ocorreram graves eventos que ameaçaram diretamente a democracia brasileira e que evidenciaram traços arcaicos de autoritarismo. Sem contar outros eventos envolvendo diferentes instituições, como a educação, o judiciário, e o meio ambiente, dentre outras.  

As incertezas políticas em tempo de pandemia não são irrisórias e residuais, mas absolutamente graves e complexas. Por isso que as orientações acerca da racionalidade histórica, em trazer novas questões aos historiadores sobre o tempo presente, são pertinentes e atuais. Ao mesmo tempo, essas incertezas reforçam a necessidade de respostas novas para velhas perguntas. Assim como todos os campos intelectuais os historiadores têm encontrado canais de engajamento e expressão das suas perplexidades. Muito em razão do conhecimento histórico acumulado sobre outros eventos semelhantes, em que a história se apresenta com a pretensão de validade[6].  O que fazer com o conhecimento histórico para além das reflexões acadêmicas próprias do nosso métier? O que fazer quando consideramos que a nossa ambição honesta por explicação social é insignificante diante do grande dilema da vida? Estas não são, definitivamente, perguntas fáceis. Porém, não deixamos de questionar nossa relevância quando as complexidades advindas com a pandemia exigem respostas urgentes de vários campos do conhecimento. Sabemos que temos um papel a cumprir frente a esse cenário de incertezas e desafios. Temos tateado nossa caixa de ferramentas buscando os assessórios mais adequados para o exercício da nossa subjetividade, conscientemente assumida e engajada.  

Devo ressaltar que ainda não tenho o distanciamento necessário para uma análise mais profunda. Tudo está sendo feito no abarcamento dessa temporalidade, que contamina toda e qualquer quimera de objetividade[7]. Essa afirmação se faz consciente de ser conscientemente imparcial, pois, em meio à toda crise institucional que a pandemia sujeitou, um fato em particular afetou diretamente à regulamentação da profissão de historiador. No dia 27 de abril de 2020, em meio aos dilemas da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro vetou integralmente o projeto de lei aprovado pelo Congresso Nacional em 18 de fevereiro[8], que regulamentava o exercício profissional do historiador. Usando justificativas inconsistentes e vagas, o veto evidenciava um modus operandi do atual governo, que insiste em responder ideologicamente às anseios e lutas sociais.

Reações imediatas surgiram, com destaque para a nota pública da Associação Nacional de História (ANPHU), que ressaltava que o veto de Bolsonaro era recebido sem muita surpresa, não obstante às esperanças e celebrações dos historiadores pela aprovação do projeto no Congresso Nacional. A nota da ANPUH corroborava as lutas históricas para a regulamentação da profissão, citando o projeto do Deputado Almeida Pinto de 1968, que acabou sendo arquivado pelo Regime Militar. Também destacava que entre os anos de 1983 e 2000, outras propostas foram apresentadas, mas todas sem sucesso. No entanto, as esperanças foram renovadas, muito efemeramente, na aprovação da proposta que tramitava no Congresso desde 2009. E o veto presidencial não foi inesperado, pois ele repercutia as ações diárias do atual governo, que insiste em atacar os “princípios mais básicos do direito à vida, à informação e à cultura”[9]. Por isso a ANPUH se manifestava contra ao que chamou de uma “história servil”, mítica, ficcional e propagandista, e conclamava os historiadores à resistência a todo e qualquer projeto que intencionasse destruir a autonomia da História como ciência.

E realmente não há muito que esperar quando a estupidez reinante – e arrebatada em tempos de pandemia – questionava evidências cientificas. Posições negacionistas do vírus, a insistência em medidas profiláticas, o ataque às instituições democráticas, a participação do governo em manifestações a favor do autoritarismo, o descaso e desrespeito ao meio ambiente, são exemplos de ações confusas e ineptas ocorridas nesse ano infausto. Essas são perplexidades que nos empurram a refletir sobre o papel do historiador nesse momento, sobretudo por meio da ação política de seu exercício profissional.

Os nossos mestres nos deixaram lições, às quais não podemos esquecê-las jamais.  Sergio Buarque de Holanda[10] nos advertiu que o historiador deve sempre refletir sobre o seu ofício. Esse ofício, na verdade fundamenta-se na reflexão constante sobre a própria história, sob o infortúnio de sermos presos às armadilhas da rotina. O chamamento a todos nós historiadores, é que devemos, antes de tudo: “viver o nosso tempo, sentir as suas pulsações, pressentir, se possível, os seus rumos e, se preciso, nos acumpliciarmos com suas aspirações”[11]. Em tempos de pandemia, eu não vejo conselho mais atual e pertinente do que este. Essas advertências exigem de nós ações que reforçam o engajamento articulado para atender à velocidade das demandas, construindo iniciativas particulares de articulação e comunicação do seu ofício. Um engajamento pautado na sensibilidade das aspirações e pulsações da consciência histórica.

Nesse sentido, e dentro dos recortes que essa nota me impõe, eu quero destacar a atuação exemplar dos periódicos científicos e a mobilização de historiadores para a criação de espaços dedicados às reflexões históricas sobre a pandemia e seus diferentes aspectos na vida social. Esse é um tipo de engajamento político que tem se manifestado frente às diferentes demandas da pandemia.  E nesse sentido, destaco o trabalho fundamental e protagonista de editores e autores, tanto no Brasil quanto no exterior, que responderam com cumplicidade às pulsações e aspirações do nosso tempo.

As provocações sobre o ofício do historiador e a regularização profissional em tempos de pandemia são complexas e absolutamente desafiadoras. Muitas universidades no Brasil ainda não decidiram sobre o retorno às aulas remotas. São diferentes fatores em debate que envolve questões sociais graves, sobretudo no campo das humanidades. E expõe também um outro desafio: evitar a evasão e o desencantamento que muitas vezes tem imperado nas humanidades e no exercício profissional do historiador. O fato é que precisamos, mais do que nunca, refletirmos sobre o nosso ofício e o nosso papel social nesse grande laboratório que é a vida: Si acaso no comprendemos nuestra propia vulnerabilidad, bastará con voltearse y contemplarse a sí mismo en este preciso instante: usted, yo, aisladas y aislados en casa, en el escritorio, pensando en los artículos pendientes y en los libros que aún no hemos leído, mientras la epidemia corre afuera y no sabemos siquiera lo que va a pasar.”[12]. Por essas e outras razões é que devemos viver sem sofrimento as incertezas e as perplexidades, assessórios fundamentais para o nosso ofício.

*Sandro Dutra e Silva é professor da Universidade Estadual de Goiás e do Centro Universitário de Anápolis e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.

Referências:

[1] Dutra e Silva, Sandro Dutra; Miraglia, Marina, Umaña, Wilson Picado. Nota de presentación.  La misión institucional de Historia Ambiental Latinoamericana y Caribeña en tiempos de pandemia: distanciamiento social, compromiso y reflexiones. HALAC – Historia Ambiental, Latinoamericana y Caribeña, v. 10, Edición Suplementaria 1 (2020), pp 8-16

[2] Rüsen, Jörn. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

[3] Rüsen, Jörn. História viva: teoria da história: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Universidade de Brasília, 2007.

[4] Burke, Peter. História e teoria social. São Paulo: Editora UNESP, 2002

[5] Santos, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez, 2001.

[6] Rüsen, Jörn. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001.

[7] Rüsen, Jörn. Op. Cit.

[8] Brasil. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado n° 368, de 2009; BRASIL. Senado Federal. Parecer nº 1.358, de 2012. Redação final do Projeto de Lei do Senado nº 368, de 2009; BRASIL. Senando Federal. Substitutivo da Câmara dos Deputados n° 3, ao Projeto de Lei do Senado nº 368, de 2009 (no. 4.699/2012), de 09 de novembro de 2012.

[9] Motta, Márcia Maria Menendes. O Veto à História – Nota da ANPUH-BRASIL contra o veto à Profissionalização. Associação Nacional de História- ANPUH-BRASIL. Disponível em <https://anpuh.org.br/index.php/2015-01-20-00-01-55/noticias2/noticias-destaque/item/5794-o-veto-a-historia-nota-da-anpuh-brasil-contra-o-veto-presidencial-a-profissionalizacao>. Acesso em 05 de julho de 2020.

[10] (196-). Palestra proferida por SBH, discorrendo sobre o tema “História”, a convite dos alunos do “Centro de Estudos Históricos Afonso de Taunay”. 17p. (orig. datil.c/anot.ms.) (anexo rascunho de 8p.) [Siarq – Fundo SBH: Série: Produção Intelectual: sub-série: originais/monografia: Pi 179]. In: CARVALHO, Raphael Guilherme de. Em torno da concepção de história de Sérgio Buarque de Holanda. Rev. Inst. Estud. Bras. [online]. 2018, n.70, p. 309

[11] Idem, p. 336

[12] Dutra e Silva, Sandro Dutra; Miraglia, Marina, Umaña, Wilson Picado. Op. Cit., p. 16.

 

Como citar este post:

DUTRA E SILVA, Sandro. As incertezas e perplexidades da racionalidade histórica em tempos de pandemia. Blog de HCS-Manguinhos. Publicado em 27 de julho, 2020. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/as-incertezas-e-perplexidades-da-racionalidade-historica-em-tempos-de-pandemia/

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