Artigo enfoca ação de agências internacionais em favelas na década de 1960

Julho/2023

Fundo Anthony Leeds / Casa de Oswaldo Cruz. Clique para ampliar.Um artigo que acaba de ir ao ar na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v. 30, 2023) estimula reflexões sobre a persistente negação do direito à cidade e à cidadania a moradores de favelas e periferias. No artigo Desenvolvimento e ciências sociais: as agências internacionais nas favelas na década de 1960, Rachel de Almeida Viana, pesquisadora de Pós-doutorado no Programa de Pós Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (PPGHCS / COC / Fiocruz), analisa a atuação e as propostas de promoção de desenvolvimento das agências Ação Comunitária do Brasil (ACB) e Brasil Estados Unidos Movimento Desenvolvimento e Organização de Comunidade (Bemdoc), que atuavam nas favelas, e da Organização das Nações Unidas, que tinha na sua lista de prioridades as habitações populares.

Rachel de Almeida Viana

A autora analisou documentos que fazem parte do Fundo Anthony Leeds, custodiado na Casa de Oswaldo Cruz, para a pesquisa que resultou na sua tese de doutorado, Encontros etnográficos e antropologia em rede: a favela do Jacarezinho e a pesquisa de Anthony e Elizabeth Leeds na década de 1960, defendida em 2019 no PPGHCS/COC, sob orientação de Nísia Trindade Lima, atual ministra da Saúde, ex-presidente da Fiocruz e pesquisadora da COC/Fiocruz Em 2020, a tese ganhou o Prêmio Oswaldo Cruz na categoria Ciências Humanas e Sociais. No recorte do artigo publicado em HCS-Manguinhos, Rachel Viana mostra que as agências não tinham um ideal de desenvolvimento bem definido, e reproduziam os estigmas da teoria da marginalidade e da cultura da pobreza nas suas ações e no seu entendimento das favelas como um problema.

“Com ações mais voltadas para a melhoria das condições físicas das favelas e para a inserção dos moradores no mercado de trabalho, o ideal de desenvolvimento promovido pelas agências não incluía a ideia de acesso aos direitos e a cidadania. O uso de categorias chave para entender o fenômeno das habitações de baixa renda, tais como integração, isolamento, autoajuda, Felt Needs, associadas a explicação do surgimento das favelas pela migração, operavam conjuntamente e acabavam por reforçar as justificativas acionadas pelo governo da Guanabara para realizar as remoções”, revela.

Segundo Rachel, mesmo não assumindo uma posição política perante as remoções, as agências internacionais ao menos colocaram em discussão tal política habitacional. Embora as agências operassem com os estigmas da teoria da marginalidade e da cultura da pobreza, as associações de moradores se mostraram organizações políticas tão complexas e importantes a ponto de terem sido fundamentais para o próprio funcionamento das agências dentro das favelas. Afinal, estas dependiam das organizações dos moradores para se conectarem ao seu público-alvo e realizarem suas ações.

“O ideal de desenvolvimento e organização de comunidade que assistentes sociais e agências internacionais veicularam já existia e era praticado nas favelas. Identificação de prioridades, organização política, ajuda mútua e redes de cooperação e trabalho eram abundantes nesses territórios antes mesmo da chegada de tais profissionais e entidades”, ressalta a pesquisadora. Ela dá como exemplo a foto (acima) dos moradores da favela Macedo Sobrinho instalando a rede de água em 1964, que ilustra que, se não fosse a organização dos moradores, as agências internacionais não teriam meios de executar suas ações.

O artigo descortina um período importante para as ciências sociais, o serviço social e a história das favelas.

“Na década de 1960, vimos transformações importantes nesses campos. Nas ciências sociais, vimos a introdução das favelas na sua agenda de pesquisa e a mudança na metodologia de pesquisa, que passou a rever a relação entre o cientista e a pessoa pesquisada, sendo vista não mais como mero informante, mas como interlocutor e participante da pesquisa. Para o serviço social, foi nessa década que se preparou a grande virada que veio a ser consolidada na década seguinte. Afinal, as críticas feitas ao desenvolvimento e organização de comunidade foi um dos fatores que levou a reconceituação do serviço social. E para a história das favelas, foi nesse período que suas associações tiveram que se fortalecer para enfrentar o período das remoções e a ditadura militar vivenciada a partir da segunda metade da década”, explica a autora.

Rachel Viana acredita que o artigo interessará não somente aos profissionais de tais áreas e a moradores de favelas, como também a historiadores, planejadores urbanos, urbanistas, gestores do espaço urbano entre outros que se dedicam às habitações de baixa renda, em seu sentido mais amplo, pois “abrange ponto nevrálgico, fundamental a todos, e que é negado aos moradores de favelas e periferias: o direito à cidade e o direito à cidadania”.

Segundo ela, a publicação do artigo é relevante porque ainda vemos a persistência de alguns estigmas atribuídos aos moradores de favelas, todos remanescentes das teorias da cultura da pobreza e da marginalidade. “Ainda hoje vemos políticas públicas, sobretudo no que tange a segurança pública, sendo amplamente pautadas por tais teorias e estigmas”, enfatiza.

Leia na revista HCS-Manguinhos:

Desenvolvimento e ciências sociais: as agências internacionais nas favelas na década de 1960, artigo de Rachel de Almeida Viana (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, volume 30, 2023)

Leia no Blog de HCS-Manguinhos:

Refazendas: as favelas tecendo a antropologia urbana
Rachel Viana apresenta sua pesquisa premiada sobre a etnografia feita por Anthony e Elizabeth Leeds e uma rede de pesquisadores nos anos 1960 no Jacarezinho, Rio de Janeiro