Arquivo fotográfico das atividades da Fundação Rockefeller no Brasil (1930-1940), da Fiocruz, é patrimônio documental da América Latina e Caribe

Dezembro/2022

Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos

O Arquivo fotográfico das atividades da Fundação Rockefeller no Brasil (1930-1940), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), foi um dos cinco acervos de instituições brasileiras entre os 18 novos conjuntos documentais nomeados pelo Comitê Regional da América Latina e do Caribe do Programa Memória do Mundo da Unesco (MoWLAC) como patrimônio documental da América Latina e do Caribe na sua XXII reunião ordinária, em Aruba, em 18 de novembro de 2022.

Os outros quatro acervos de instituições brasileiras nomeados pela Unesco são: Arquivo Oduvaldo Vianna, da Fundação Nacional de Artes (Funarte); História da loucura: expedientes de internação do primeiro hospício do Brasil (Rio de Janeiro, 1844-1944), do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira; Série Terrorismo de Estado no Período da Ditadura – Cone Sul (Série n. 3 do Fundo Movimento Justiça e Direitos Humanos), do Instituto de Ciências Humanas e da Informação; e Atas da Câmara (1555 – 1715), do Arquivo Municipal de São Paulo.

“Foi com alegria e grande sentido de responsabilidade que recebemos a confirmação da nomeação do Arquivo fotográfico das atividades da Fundação Rockefeller no Brasil (1930-1940) para o Programa Memória do Mundo para a América Latina e Caribe da Unesco”, afirmou Magali Romero Sá, vice-diretora de Pesquisa e Educação da Fiocruz. “Esta nomeação reforça a importância de darmos continuidade ao trabalho de preservação do patrimônio cultural brasileiro em saúde e ciência e expandir a pesquisa e o acesso a estes documentos”, completou.

Sob a guarda do Departamento de Arquivo e Documentação da Casa de Oswaldo Cruz (DAD/COC/Fiocruz), o Arquivo fotográfico das atividades da Fundação Rockefeller no Brasil (1930-1940) retrata as ações do Serviço Nacional de Febre Amarela e do Serviço Nacional da Malária e contém, no total, 4.209 imagens coladas a fichas de catalogação, com registros de algumas informações sobre seus contextos de produção, além de 633 negativos de vidro.

 

Um médico do Serviço de Febre Amarela examina um indígena da tribo Carajás durante a campanha de erradicação do mosquito Aedes aegypti no Brasil. Rio Araguai, Leopoldina, Goiás, 1935. Foto Dr. E. Cardoso. Acervo COC/Fiocruz

O arquivo da Fiocruz se divide em três séries fotográficas: a série Serviço de Febre Amarela, que contém registros sobre a campanha de erradicação do mosquito Aedes aegypti nos estados brasileiros e em países da América do Sul, além de registros dos estudos e pesquisas sobre a forma silvestre da febre amarela e sobre o processo de produção da vacina contra a doença; a série Serviço de Malária do Nordeste, que abrange os esforços pela erradicação do mosquito Anopheles gambiae, vetor da malária, durante uma epidemia no nordeste brasileiro, em 1939; e a série Exposições do Serviço de Febre Amarela e do Serviço de Malária do Nordeste, apresenta os registros da exibição dos trabalhos realizados no Brasil durante os anos de 1930 e 1940 na IX Conferência Sanitária Pan-Americana, na Exposição de Chicago e na Exposição do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).

Aline Lopes de Lacerda

De acordo com Aline Lopes de Lacerda, pesquisadora do DAD/COC/Fiocruz que formulou a proposta ao MoWLAC, o arquivo constitui uma fonte única para pesquisas sobre as formas de combate a duas das mais desafiadoras doenças endêmicas brasileiras – febre amarela e malária – num momento no qual pesquisas de campo e em laboratório traziam novas perspectivas sobre as formas de contágio das doenças e as maneiras de combatê-las. Com predominância de registros realizados no território brasileiro, contém cerca de 600 imagens de outros países da América Latina, que também foram visitados por médicos e cientistas da Fundação Rockefeller nas viagens pelas campanhas de combate, principalmente da febre amarela.

“Não se tem notícia de outro acervo que possua as mesmas características de conteúdo e volume, o que lhe confere a qualidade de repositório singular da memória visual de um dos mais marcantes episódios de cooperação científica internacional na área da saúde pública no Brasil, e o habilita como referência para estudos que discutam a técnica e a estética fotográficas aplicadas à saúde e à ciência”, enfatiza.

Segundo a pesquisadora, o reconhecimento do arquivo pelo Comitê Regional para América Latina e o Caribe do Programa Memória do Mundo da Unesco, uma instância internacional avaliadora da importância de arquivos e coleções em âmbito nacional, regional ou mundial, confere aos acervos nominados um reconhecimento mais ampliado de seus valores como patrimônio, uma visibilidade que se traduz em mais pesquisas e usos diversos sobre eles e também os qualifica como objeto patrimonial para concorrer a editais de fomento à preservação e à ampliação de cuidados necessários à sua permanência no tempo.

Etapa de produção da vacina contra a febre amarela. Abertura de ovos e retirada dos embriões para preparo da vacina. Foto produzida para integrar o Manual de Vacina, produzido pelo laboratório construído pela Fundação Rockefeller e o governo brasileiro em Manguinhos, sede do Instituto Oswaldo Cruz, atual Fiocruz. Foto Silvio Cunha. 1943. Acervo COC/Fiocruz

Aline Lopes de Lacerda explica que o período mais produtivo da cooperação entre Brasil e EUA ocorreu entre 1930 e 1940, com a implantação e execução de campanhas sanitárias, com a realização de um levantamento epidemiológico robusto, que englobava todas as regiões do país, com a organização de estudos e pesquisas sobre a forma silvestre da febre amarela e com a produção de uma vacina eficaz contra ela. A partir da década de 1940, com laboratório já montado e fabricando a vacina antiamarílica, a Fundação Rockefeller paulatinamente se retira deste cenário e transfere o controle das campanhas e de suas pesquisas ao já estruturado Serviço Nacional de Febre Amarela, cujo laboratório de produção da vacina acaba sendo incorporado, em 1950, ao Instituto Oswaldo Cruz, atualmente uma das unidades da Fiocruz. 

“Como as atividades dessa experiência de cooperação se concentraram em Manguinhos, e como o laboratório que abrigou a produção da primeira vacina eficaz contra a febre amarela foi construído também no campus, esse arquivo foi conservado e, hoje, integra o patrimônio cultural da Fiocruz, que pode incentivar projetos de pesquisa, de divulgação científica e cultural a partir do arquivo e estimular a ampliação de sua visibilidade, possibilitando usos diversos das imagens do acervo sobre esse episódio marcante de nossa história no campo da saúde pública e da ciência”, conta.

A documentação acumulada e arquivada neste laboratório foi posteriormente encaminhada para a custódia da Casa de Oswaldo Cruz, unidade da Fiocruz responsável pela guarda do acervo histórico da instituição.  

Destaques do conjunto fotográfico

A pesquisadora da Casa explica que, como o arquivo foi preservado de forma bastante íntegra nas suas séries fotográficas, é possível acompanhar, na sequência das imagens, os estudos e pesquisas, em campo e no laboratório, que tiveram como objetivo a produção de uma vacina contra a febre amarela, então inexistente. “A série sobre as imagens da sequência de produção da vacina em laboratório, com vistas a compor um Manual da vacina, é particularmente rica para pesquisas”, indica.  

Outro destaque, segundo Aline Lopes de Lacerda, é a série sobre a campanha de erradicação do mosquito Aedes aegypti em território nacional. Um verdadeiro inquérito epidemiológico foi realizado para o entendimento do ciclo de contágio da doença e seus vetores, e para a obtenção de dados sobre casos confirmados da doença, o que só podia ser comprovado, à época, em exame pós morte.

“A produção fotográfica dessas atividades foi bastante generosa e nos oferece um olhar privilegiado para compreendermos não só as técnicas e táticas que os sanitaristas empregavam na campanha, mas também os contextos regionais de habitação e de vida das populações do período, notadamente as rurais”, conta.

Por último, Aline recomenda a série sobre o combate ao mosquito Anopheles gambiae no nordeste do país, por ocasião do surto de malária em 1939. “Embora mais concisa em termos de volume de imagens, é extremamente rica nos detalhes das ações empregadas para o combate ao mosquito”, diz.

Carroça empregada pelo Serviço de Malária do Nordeste no transporte de compressor de ar DeVilbiss, usado pela turma de expurgo domiciliar durante o combate ao mosquito Anopheles gambiae, vetor da malária. Ceará, 1940. Acervo COC/Fiocruz

“O arquivo em breve será digitalizado. Essa etapa é fundamental para garantir o amplo acesso aos documentos, pois, com a digitalização e a inserção das imagens digitais na base de dados, haverá a necessidade de descrever foto a foto e associar cada item documental ao seu representante digital nessa base. O resultado será oferecer ao usuário a possibilidade de aliar tanto as informações sobre o documento, os metadados descritivos, quanto a imagem do próprio documento, aliando imagem ao texto e ampliando a possibilidade de realização de pesquisas completas realizadas de forma remota”, conta. 

Segundo a pesquisadora, o arquivo já se encontra organizado e descrito na Base Arch da Casa de Oswaldo Cruz, mas essa descrição alcançou os conjuntos fotográficos, chamados de séries ou dossiês, nos quais as fotos que compartilham das mesmas características são descritas em conjunto.

Em relação à preservação física, a pesquisadora revela que o arquivo encontra-se higienizado, acondicionado em invólucros individuais confeccionados com material de qualidade arquivística e armazenados em estantes deslizante de aço em ambiente climatizado e com controle de temperatura e umidade, seguindo as boas práticas de conservação de material fotográfico. Segundo ela, com a digitalização e a produção de representantes digitais em alta resolução, haverá a necessidade de elaborar um plano de preservação digital para fazer face ao material digital que será criado, visando sua manutenção no tempo. 

A pesquisa deve ser agendada aqui: https://www.gov.br/pt-br/servicos/consultar-arquivos-historicos-da-fiocruz 

Dúvidas podem ser tiradas pelo email: dad.consulta@fiocruz.br 

Pesquisas e trabalhos que usaram as imagens do Arquivo fotográfico das atividades da Fundação Rockefeller no Brasil (1930-1940)

Conheça os 18 acervos nomeados pela Unesco e leia a notícia completa no site da Unesco

Leia no Blog e na revista HCS-Manguinhos:

Cartazes revelam influência da Fundação Rockefeller na saúde do Brasil
Cartazes de educação e propaganda sanitárias que circularam na década de 1920 na Bahia revelam a influência da Fundação Rockefeller na saúde do Brasil. Leia artigo do historiador Ricardo Batista (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 26, n.4, out./dez. 2019)

Estudo sobre Barros Barreto analisa formação profissional de médicos no Brasil nos anos 1910
Leia artigo de Ricardo dos Santos Batista (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 26, n. 3, jul/set 2019)

Quando os paradigmas mudam na saúde pública, o que muda na história?
Para Guilherme Arantes Mello, o discurso da Fundação Rockefeller sobre os centros de saúde ainda se configura como a última ruptura paradigmática holística da saúde pública brasileira

Leia na revista HCS-Manguinhos:

Produzindo um imunizante: imagens da produção da vacina contra a febre amarela, artigo de Aline Lopes de Lacerda e Maria Teresa Villela Bandeira de Mello (História, Ciências, Saúde  Manguinhos v. 10, supl. 2, 2003)

A malária em foto: imagens de campanhas e ações no Brasil da primeira metade do século XX, artigo de Gilberto Hochman e Maria Teresa Bandeira de Mello, e Paulo Roberto Elian dos Santos (HCS-Manguinhos 2002, vol.9)

Educação e propaganda sanitárias: desdobramentos da formação de um sanitarista brasileiro na Fundação Rockefeller, artigo de Ricardo Batista (v. 26, n.4, out./dez. 2019) 

Nova história da Fundação Rockefeller: a odisseia da saúde global revisitada artigo de Rodrigo Cesar da Silva Magalhães (vol. 23, n. 4, dez 2016)

 Imperialismo & filantropiaa experiência da Fundação Rockefeller e o sanitarismo no Brasil na Primeira República, artigo de Carlos Henrique Assunção Paiva (v. 12, n. 1, abr 2005)

Retratos do Brasil: uma coleção do Rockefeller Archive Center, artigo de Aline Lopes de Lacerda (v. 9, n. 3, dez 2002)

A Fundação Rockefeller e os serviços de saúde em São Paulo (1920-30): perspectivas históricas, artigo de Lina Rodrigues de Faria (v. 9, n. 3, dez 2002)

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