Apocalipse pop: há 40 anos, canções sobre o fim do mundo

Abril/2024

“Naquela manhã eu acordei tarde de bode Com tudo que sei, acendi uma vela, abri a janela e pasmei Alguns edifícios explodiam, pessoas corriam Eu disse bom dia e ignorei…”
Trecho da música Nostradamus, de Eduardo Dusek, 1981.

Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos

O medo de guerra nuclear e colapso ambiental que o mundo vive hoje não é novidade para quem chegou na “meia idade” e tem gravadas na memória certas canções do início da década de 1980 com letras apocalípticas, que faziam referência a temores da época. Um artigo publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v. 30, 2023) apresenta um levantamento e a análise de músicas lançadas no contexto da Guerra Fria e de crises ambientais que refletem preocupações com o futuro do Brasil e da humanidade, selecionadas a partir de buscas em portais enciclopédicos de músicas com registro fonográfico de 1980 a 1989. 

Detalhes de discos que marcaram os anos 1980.

Em Apocalipse pop: representações do fim do mundo em canções brasileiras da década de 1980, Anderson Cleiton Fernandes Leite, analista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, e Emerson Ferreira Gomes, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, analisam canções que representam uma mudança da expectativa nacional com relação ao futuro, diante do temor de desastres. 


Clipe de “Nostradamus”, de Eduardo Dusek (1981), uma das músicas analisadas no artigo

Os autores contextualizam a conjuntura brasileira e internacional e descrevem o mercado musical da época, com foco na emergência do rock como protagonista e sua contraposição ideológica e musical à música popular brasileira (MPB), além da influência da estética e da ideologia do movimento punk nesse cenário.


Grito suburbano, primeiro registro fonográfico do punk rock brasileiro, com músicas das bandas Cólera, Olho Seco e Inocentes. Ouça na íntegra o álbum de 1982.

Os pesquisadores agruparam as canções selecionadas em dois blocos temáticos: “apocalipse nuclear”, com letras sobre uma provável guerra com armas nucleares pelas duas superpotências da época (EUA e URSS), e “apocalipse ambiental”, com músicas que abordam problemas ambientais e suas consequências para a humanidade, incluindo as que tratam especificamente das usinas nucleares de Angra dos Reis e do desastre de Cubatão. O acidente nuclear em Chernobyl, na URSS, foi tratado separadamente, pela temática híbrida nuclear e ambiental.

Leite e Gomes também fizeram um exame específico de algumas letras de Roberto Carlos, pelo fato de o cantor ser o maior vendedor de discos no Brasil nas décadas de 1970 e 1980, com público nas mais diversas classes sociais, e por ter canções que tratam diretamente de temática apocalíptica, tanto no aspecto nuclear como ambiental.


Clipe da música “Apocalipse”, de Roberto Carlos (1986)

Com o uso da metodologia sócio-histórica, os autores abordam a relação entre a produção cultural e as visões sobre a ciência e a tecnologia na década de 1980. A análise se fundamenta nas noções de horizonte de expectativas do historiador Reinhart Koselleck, nas expectativas decrescentes do filósofo Paulo Arantes e na abordagem do economista Francisco Oliveira sobre o colapso do desenvolvimentismo brasileiro após o fim da ditadura militar.

Os autores ressaltam que uma das soluções para a crise da indústria fonográfica brasileira no início dos anos 1980 foi a reformulação do elenco das gravadoras. “Buscou-se priorizar estilos com baixo custo de produção, em que se enquadrava o novo rock brasileiro, formado por bandas como Titãs, Legião Urbana, Kid Abelha, entre outras”, contam. Em 1984, o rock já respondia por mais de 50% das vendas de grandes gravadoras, mas, apesar do papel que cumpriu na recuperação do mercado de discos, não manteve o seu protagonismo até o fim da década, perdendo espaço na indústria para estilos regionais diversificados do Brasil, do sertanejo ao axé.

“Vale destacar que o momento histórico de fim da ditadura, a construção da Nova República e o modo como a indústria musical trabalhava na época possibilitaram um raro momento em que as paradas de sucesso tiveram a presença de canções com letras tão críticas e politizadas como se deu durante parte da década de 1980. Basta lembrar que discos como Cabeça Dinossauro (Titãs, 1986) ou canções como Faroeste Caboclo (Que País É Este, Legião Urbana, 1987), com seus mais de oito minutos, foram sucessos na grande mídia. Não acredito que esse momento volte, inclusive pelas mudanças que indústria da música sofreu”, afirma Anderson Leite em entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos.

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Para Anderson Leite, a internet ajudou a “estandardizar” a canção popular. “Além da mistura de hedonismo com ‘sofrência’, típica das letras atuais do sertanejo, o que se tem é o ‘agronejo’, que faz uma exaltação ostensiva do poderio econômico do agronegócio”, afirma.

Leia na revista HCS-Manguinhos:

Apocalipse pop: representações do fim do mundo em canções brasileiras da década de 1980, artigo de Anderson Cleiton Fernandes Leite e Emerson Ferreira Gomes (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 30, 2023) 

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