Setembro/2013
Uma equipe de pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) está decifrando as condições de saúde da população do Rio de Janeiro nos períodos colonial e imperial. E dois resultados obtidos recentemente chamam a atenção. O primeiro é que as doenças causadas por vermes eram bastante disseminadas: afetavam os pobres, que sabidamente viviam em ambientes insalubres, e também os ricos, que em princípio estariam mais protegidos por disporem de melhores condições sanitárias. Já o segundo resultado atribui uma possível nova origem para a tuberculose dos escravos africanos. Apresentado em maio deste ano na revista Emerging Infectious Diseases, ele indica que ao menos parte dos negros já teria chegado ao Brasil com a infecção, e não se contaminado depois de aportar no Rio, a então capital do país.
O grupo coordenado pela bióloga Alena Mayo Iñiguez na Fiocruz chegou a essas conclusões depois de realizar análises genéticas e parasitológicas em esqueletos humanos encontrados nos últimos anos em três sítios arqueológicos do Rio: o cemitério dos Pretos Novos, o da Praça XV e o da Igreja Nossa Senhora do Carmo. Hoje confinados em uma área relativamente pequena no centro da capital fluminense – o da Praça XV e o do Carmo ficam a poucas quadras de distância um do outro, na área mais central da cidade, enquanto o dos Pretos Novos está a cerca de 2 quilômetros a noroeste dali, na zona portuária –, esses antigos cemitérios receberam no passado os restos mortais de pessoas de origens sociais bem distintas. Por essa razão, as informações extraídas dessas ossadas permitem agora entender melhor como viviam e morriam os moradores do que foi o maior e mais importante centro comercial do país nos períodos colonial e imperial.
Nos séculos XVIII e XIX o cemitério da Praça XV de Novembro recebeu corpos de pessoas de todas as classes sociais, sobretudo das que morriam durante as epidemias, motivo pelo qual ele dá uma ideia geral do estado de saúde da população carioca na época. “Nessas ossadas identificamos marcadores genéticos de ameríndios, europeus e africanos”, conta Alena, pesquisadora do Laboratório de Biologia de Tripanosomatídeos do Instituto Oswaldo Cruz, da Fiocruz, e coordenadora dos estudos.
A análise do material coletado de 10 pessoas mostrou que 80% delas apresentavam infecção por parasitas intestinais – em especial, vermes e protozoários. Os parasitas mais comuns eram os vermes do gênero Trichuris. De corpo alongado e com até 4 centímetros de comprimento, esses vermes vivem nos intestinos e, em grande número, podem causar sangramentos e anemia – além deTrichuris, também foram achados ovos de tênia e de lombriga. O grupo de Alena encontrou ovos de Trichuris em 70% das amostras estudadas. De acordo com os pesquisadores, essa taxa de infecção é até conservadora, uma vez que o material havia sido lavado antes de ser analisado. No caso dos cemitérios da Praça XV e dos Pretos Novos, o grupo da Fiocruz teve de trabalhar com o material coletado em operações de salvamento arqueológico, parte encontrada durante as obras de revitalização da zona portuária da cidade, enquanto na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, a antiga Sé do Rio, as amostras foram analisadas no próprio local em que foram encontradas durante a restauração do prédio em 2007. “Fizemos a coleta com foco na pesquisa genética”, conta Alena. Depois de estudados, os ossos foram reenterrados.
Na Igreja Nossa Senhora do Carmo, onde entre os séculos XVII e XIX eram sepultados os mortos das famílias abastadas, em geral de origem europeia, a taxa de infecção foi de apenas 12%. Apesar de mais baixo, o número surpreendeu os pesquisadores. “A variedade de parasitas encontrada ali é igual à observada na Praça XV”, diz Alena. “Isso mostra que todos, ricos e pobres, estavam expostos ao mesmo ambiente e aos mesmos riscos.”
Doença de europeu
No caso da tuberculose, porém, os pesquisadores encontraram um padrão oposto ao das verminoses. A doença pulmonar causada pela bactériaMycobacterium tuberculosis era bem mais comum entre as pessoas mais ricas do que entre as pobres. A farmacêutica Lauren Jaeger, aluna de doutorado de Alena, e o restante da equipe identificaram material genético da bactéria da tuberculose nos restos humanos de 17 dos 32 indivíduos (quase todos descendentes de europeus) encontrados na Igreja Nossa Senhora do Carmo e identificados pela equipe do arqueólogo Ondemar Dias, do Instituto de Arqueologia Brasileira. Já entre os negros enterrados no Cemitério dos Pretos Novos a taxa de infecção por tuberculose foi de 25%, segundo estudo feito em parceria com a paleopatologista Sheila de Souza, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fiocruz.
Na opinião dos pesquisadores, a frequência maior de tuberculose entre os descendentes de europeus condiz com a situação histórica, já que naquele período a prevalência da enfermidade era alta na Europa. “Os europeus exerceram um papel importante na disseminação dessa doença no Novo Mundo”, conta Alena.
Embora não se possa negar a influência europeia no espalhamento da tuberculose, a análise dos restos mortais dos escravos enterrados no Cemitério dos Pretos Novos está levando os pesquisadores a repensar uma crença antiga: a de que a África era um continente livre da enfermidade e que os escravos trazidos para o Brasil só se infectaram aqui.