Junho/2020
Érico Silva Muniz *
A pandemia de Covid-19 tem encontrado terreno fértil pela região amazônica. Atualmente, além das grandes cidades da região, os interiores da floresta vivenciam o aumento expressivo no número de casos, contexto em que as desigualdades sociais e de acesso a serviços de saúde ficam ainda mais evidenciados. A preocupação em estabelecer barreiras para controle da contaminação e mesmo a necessidade de estruturar serviços de saúde, no entanto, não são uma inteira novidade. Parte das medidas que são implementadas no tempo presente foram paliativos históricos da estruturação da saúde pública.
Quarentena, medidas de isolamento, vigilância de portos e aeroportos e cordões sanitários isolando cidades e nações são decisões comuns no período em que o mundo tem vivenciado a pandemia de coronavírus. Essas ações, na realidade, são antigas conhecidas do campo da saúde pública. Algumas delas foram as primeiras maneiras que os estados nacionais criaram para o controle da proliferação de doenças com a finalidade de salvar vidas.
Autores clássicos como Foucault (1979) e Rosen (1980) demonstraram que as origens da saúde pública contemporânea datam do século XVIII, e remontam justamente ao controle de portos e circulação de epidemias, momento em que o viés coercitivo merecia destaque nas estruturas das polícias médicas. O campo de estudos da história da saúde e das doenças tem demonstrado que o fenômeno da doença é ao mesmo tempo biológico e social. Ou seja, só conseguimos apreender as dimensões do processo de adoecimento se além da dimensão biomédica buscarmos entender também seus impactos econômicos, as interdependências entre os grupos e os medos sociogênicos que são gerados. Em casos de epidemias e pandemias essa assertiva é especialmente verdadeira, pois o impacto frente ao desconhecido suspende a condição de normalidade impondo novas dinâmicas para os elaboradores das políticas públicas e para a opinião pública.
As doenças passam, portanto, por diversos enquadramentos sociais que variam ao longo da história. Charles Rosenberg (1992) sugere que as epidemias têm um padrão de comportamento que pode ser caracterizado em quatro momentos.
O primeiro momento é marcado pela aceitação gradual da dimensão do problema, etapa marcada pela tentativa de controlar o pânico e por desconfianças, momento em que prejuízos à economia são destacados.
Quando os números de doentes e óbitos já não mais permitem negar a realidade, a epidemia entra em uma segunda fase que é a da aceitação do problema – nela ocorrem as buscas das raízes e possíveis saídas para o problema, momento marcado por explicações de cunho religioso e científico, variando conforme cada sociedade.
O terceiro ato do enquadramento histórico dos fenômenos epidêmicos implica nas ações de saúde pública que são implementadas, fase em que se debatem as modalidades de isolamento e quarentenas, a interrupção de atividades econômicas e do comércio, quando a sociedade demanda do poder público ações efetivas. A pobreza e as desigualdades sociais ficam mais evidentes neste momento.
O quarto e último momento é quando os casos da doença começam a diminuir até que ela desapareça enquanto problema de saúde pública. É recorrente que se discuta na última fase os impactos e o legado deixados pós-epidemia acompanhado de novas políticas e parâmetros de saúde para lidar com o problema (Rosenberg, 1992).
No caso do coronavírus, a pandemia do século XXI, diversos têm sido os aspectos destacados pelos estudiosos, da filosofia à comunicação, da medicina à geografia. Os limites do capitalismo, a necessidade da ação do estado nacional e a vulnerabilidade trazida pela globalização são alguns dos elementos que vêm à baila para contextualizar o novo momento.
De volta à realidade amazônica podemos pensar no curso que o vírus vem fazendo pelos rios da floresta. No fim do mês de maio de 2020, momento em que este texto foi finalizado, a Covid-19 já registrava mais casos nos interiores do Amazonas e do Pará do que nas regiões metropolitanas de Manaus e de Belém. No Amazonas, todos os leitos de UTI estão localizados na capital, o que faz com que em algumas localidades viagens de centenas de quilômetros sejam necessárias para atendimento médico adequado.
O arquipelágo do Marajó, por sua vez, apresenta índices de letalidade altíssimos, tendo o município de Breves uma das maiores taxas de mortalidade por Covid-19 em todo país. Aliás, é no Marajó que se registram alguns dos menores índices de desenvolvimento humano (IDH) do Brasil. O Amapá sente especialmente os efeitos da crise: além do número insuficiente de vagas em hospitais, o estado tem ainda dificuldades para atrair mão de obra médica nas chamadas para contratação de pessoal.
Entre os povos indígenas, a pandemia adquire feições ainda mais graves. As doenças que ao longo de séculos entram pelos rios gerando surtos epidêmicos e vitimizando os povos originários enfatizam a vulnerabilidade imunológica desses grupos. Lideranças indígenas denunciam que a doença escancara os problemas existentes que são agravados no momento de enfraquecimento da política indigenista, marcada por estruturas e distritos de saúde insuficientes para salvar vidas.
Aliás, é necessário dizer que a história da interiorização da própria presença do estado nacional brasileiro na Amazônia deve-se em grande parte aos serviços de saúde pública, que têm uma íntima relação com o combate às chamadas endemias rurais – como malária, leishmaniose, doença de Chagas, brucelose, febre amarela, esquistossomose, ancilostomose, bócio endêmico, entre outras – que motivaram gerações de cientistas e sanitaristas no controle de doenças na região. É impossível resistir à comparação histórica com a gripe espanhola, considerando que a pandemia de 1918 também foi causada por um vírus respiratório e atingiu de maneira peculiar a Amazônia. Em trabalho recente Abreu Júnior (2018) mostrou que a espanhola grassou em Belém e na região que vivenciavam um frágil estado sanitário após o ciclo da borracha. O autor demonstra que a introdução da doença por rios e mares, o número reduzido de médicos e os registros de mortes acentuados nas periferias marcaram aquele momento do mundo pós Primeira Guerra. Além disso, as estratégias de postos de socorro e os hospitais de isolamento para as vítimas da doença que até então tinha causa desconhecida guardam muitas semelhanças com o tempo presente.
Por fim, é possível afirmar que o que Judith Butler (2020) mencionou sobre as faces das desigualdades em tempos de Covid-19 parece especialmente verdadeiro para a região amazônica. Segundo Butler, as diferenças sociais estruturantes marcadas pelo racismo, pela violência contra as mulheres e pela discriminação por identidade de gênero que marcam a contemporaneidade expressam suas faces de maneira mais aguda em tempos de pandemia. A Amazônia, onde o rio é rua, marcada por forte presença de povos tradicionais, indígenas, quilombolas e ribeirinhos, vê no contexto da pandemia atual que as assimetrias nos modos de viver, adoecer e morrer na região sublinham as discrepâncias históricas da cidadania no Brasil.
*Érico Silva Muniz é professor de História da Universidade Federal do Pará e doutor em História das Ciências e da Saúde (Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz)
Referências
ABREU JUNIOR, José Maria de Castro. O vírus e a cidade: rastros da gripe espanhola no cotidiano da cidade de Belém (1918). Belém: Paka-Tatu, 2018.
BUTLER, Judith. El capitalismo tiene sus limites. Sopa de Wuhan. Editorial: ASPO (Aislamiento Social Preventivo y Obligatorio), 2020. p. 59-65. Disponível em: http://iips.usac.edu.gt/wp-content/uploads/2020/03/Sopa-de-Wuhan-ASPO.pdf. Data de Acesso: 21 mai 2020.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979.
ROSEN, George. Da polícia médica à medicina social: ensaios sobre a história da assistência médica. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980.
ROSENBERG, Charles E. Explaining Epidemics and Other Studies in the History of Medicine. New York: Cambridge University Press, 1992.
Como citar este post:
MUNIZ, Érico Silva. A interiorização da Covid-19 na Amazônia: reflexões sobre o passado e o presente da saúde pública. Blog de HCS-Manguinhos. Publicado em 8 de junho, 2020. Acesso em 8 de junho, 2020. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/a-interiorizacao-da-covid-19-na-amazonia-reflexoes-sobre-o-passado-e-o-presente-da-saude-publica
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