Fevereiro/2014
Danielle Kiffer | Boletim da Faperj
Revista da Semana/ 29 de junho de 1929 |
Em 1929, os jornais da época divulgavam as campanhas contra a febre amarela |
Há mais de um século, a febre amarela era devastadora, causando incontáveis mortes em todo o mundo. Para reverter a situação, que também era alarmante no Brasil dos anos 1930, campanhas contra a doença se intensificaram, assim como as pesquisas médicas para se conhecer melhor esse mal. Da investigação científica, iniciada naquela ocasião, resultou o acervo que hoje compõe a Coleção de Febre Amarela, do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), agora disponibilizado on-line na página virtual do Museu de Patologia da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
A coleção é composta por cerca de 500 mil amostras de fígado de pessoas que faleceram com suspeita de febre amarela, coletadas entre 1931 e 1970, em todo o território brasileiro e em outros países da América Latina, como a Colômbia, e outras 20 mil amostras provenientes de algumas nações do continente africano –, conservadas em formol, acompanhadas de informações da época sobre diagnóstico, origem e localização dos casos – documentos que se encontram sob a guarda da Casa de Oswaldo Cruz. “Essa é uma das maiores coleções de referência histopatológica de fígado do mundo e uma obra-prima da medicina contemporânea”, afirma a microbiologista Barbara Cristina Dias de Oliveira, uma das responsáveis pelo acervo e pelo projeto de divulgação da coleção pela internet, que teve apoio da FAPERJ por meio do programa de Difusão e Popularização de Ciência e Tecnologia.
Gutemberg Brito/IOC |
No acervo, há cerca de 500 mil fragmentos de fígado retirados de pacientes que foram a óbito entre 1930 e 1970 |
O material é resultado do convênio instituído entre o governo brasileiro e a Fundação Rockefeller, que, à época, enviou médicos e pesquisadores ao País, como forma de contribuir para eliminar a febre amarela. Na iniciativa conjunta, patologistas brasileiros e norte-americanos reuniam-se no então Laboratório de Histopatologia da Febre Amarela, instalado no Pavilhão Rockefeller, construído especialmente para a ocasião, atualcampus Manguinhos, da Fiocruz. Seu objetivo era um só: processar as amostras de fígado de doentes que chegaram a óbito e proceder ao diagnóstico.
Cada fragmento de fígado, retirado por viscerotomia, era fixado em formalina, clivado, emblocado em parafina, gerando lâminas histológicas coradas para diagnóstico. “Em 1949, após a descoberta do ciclo silvestre da febre amarela, os pesquisadores da Fundação Rockefeller chegaram à conclusão de que seria impossível erradicá-la por completo. Por esse motivo, acabaram se dedicando às parasitoses do Norte e Nordeste brasileiro”, conta Barbara. A microbiologista, no entanto, complementa: “Entretanto, todos os procedimentos realizados até aquela data geraram um grande know-how sobre a doença para os patologistas brasileiros, tornando-os consultores e especialistas no assunto. Tanto que, por volta de 1934, devido ao grande número de casos da doença na Colômbia, foi enviado ao Brasil um patologista colombiano para treinamento de diagnóstico necroscópico da febre amarela. Naquele mesmo ano, também com a colaboração da Fundação Rockefeller, foi fundado um laboratório para o diagnóstico da doença em Bogotá.” O Laboratório de Histopatologia da Febre Amarela também fornecia coleções de lâminas histológicas com descrição histopatológica para o diagnóstico de várias doenças principalmente tropicais.
As pesquisas no Brasil tiveram continuidade. Uma das curiosidades da coleção, por exemplo, é a série X. “Para cada diagnóstico feito àquela ocasião, era preciso haver consenso entre cinco patologistas da época. Caso não houvesse esse consenso, o caso era adiado para estudo e aprofundamento, com o objetivo de fechar o diagnóstico. Esses casos eram reunidos na chamada série X”, diz Barbara.
Gutemberg Brito/IOC |
Lâminas histológicas: 5 mil unidades já foram disponibilizadas on-line |
Para que tudo seja disponibilizado na internet, cada uma das lâminas precisa ser limpa, identificada, catalogada e fotografada. “Já limpamos e recuperamos cerca de 100 mil lâminas, em projetos financiados pelo BNDES e pela Faperj. Contudo, o mais trabalhoso no momento da catalogação on-line é a identificação de locais que anteriormente tinham outros nomes. Isso aconteceu com frequência em alguns bairros de cidades como Recife, por exemplo, e exigiu da equipe um enorme esforço de pesquisa”, conta Barbara. Foram catalogadas cerca de 15 mil lâminas, das quais 5 mil já estão disponíveis para consultas do público na internet. “Dados sensíveis, como o nome do paciente, foram preservados. Porém, informações de relevância científica são disponibilizadas”, detalha a microbiologista.
Para consultar o acervo, basta acessar museudapatologia.ioc.fiocruz.br (menu Museu da Patologia, clicar em acesso ao Banco de Dados). É necessário um cadastro prévio, realizado online para a liberação de acesso ao Banco de Dados. No endereço, é possível encontrar outras coleções disponíveis, e navegar por um espaço dedicado especialmente a professores, em que há aulas, procedimentos e material didático para que auxiliar no aprendizado dos alunos
Fonte: Boletim da Faperj
Leia em História, Ciências, Saúde – Manguinhos:
Antiescravismo e epidemia: “O tráfico dos negros considerado como a causa da febre amarela”, de Mathieu François Maxime Audouard, e o Rio de Janeiro em 1850. Kaori Kodama, vol.16, no.2, Jun 2009.
A cidade e a morte: a febre amarela e seu impacto sobre os costumes fúnebres no Rio de Janeiro (1849-50) – Cláudia Rodrigues, vol.6, no.1, Jun 1999
Combates sanitários e embates científicos: Emílio Ribas e a febre amarela em São Paulo – Marta de Almeida, vol.6, no.3, Fev 2000
Produzindo um imunizante: imagens da produção da vacina contra a febre amarela – Aline Lopes Lacerda e Maria Teresa Villela Bandeira de Mello, vol.10, suppl.2, 2003
Da ‘abominável profissão de vampiros’: Emílio Goeldi e Os mosquitos no Pará (1905) – Nelson Sanjad, vol.10, no.1, Abr 2003
Representação e intervenção em saúde pública: vírus, mosquitos e especialistas da Fundação Rockefeller no Brasil – Ilana Löwy, vol.5, no.3, Fev 1999