Junho/2020
Almir Leal de Oliveira *
A pandemia de covid-19 chegou no Ceará de uma forma avassaladora e gerou uma grande crise sanitária e humana. Para compreender este grande problema contemporâneo e apontar medidas para contorná-lo, a postura dos investigadores poderia adotar uma abordagem interdisciplinar, levando em consideração o histórico natural da doença, as condições sociais da população e o histórico epidemiológico do Ceará. Esta é uma rara oportunidade para refletir como cada campo específico do conhecimento pode repensar a maneira de abordar os fenômenos estudados, incorporando a temporalidade para entender os determinantes que orientam os rumos da pandemia em cada uma específica situação histórico-social.
As análises da pandemia e as ações governamentais do seu enfrentamento no Ceará se vulgarizaram, como no restante do país, através da contagem dos casos e do raciocínio estatístico da morbidade e mortalidade causada pelo covid-19. Aos poucos foram sendo incorporadas análises e ações da medicina preventiva e de políticas sociais. Antes da confirmação dos três primeiros casos de covid-19, em 17 de março, o governo do estado do Ceará criou um comitê para o enfrentamento da pandemia, procurando discutir medidas preventivas e a preparação do sistema de saúde. As atividades presenciais da Universidade Federal do Ceará foram suspensas dia 18, assim como outras unidades educacionais. O isolamento social entrou em vigor no estado no dia 20 de março, com 68 casos, fechando o comércio, escolas e atividades não essenciais. Parecia uma atitude muito antecipada diante do pequeno número de casos, mas a montagem do aparato emergencial de saúde para enfrentamento da pandemia demandaria tempo para não resultar na falência rápida do Sistema Único de Saúde.
Em pouco mais de 50 dias, em 8 de maio, o Ceará viu as suas taxas de contaminação subirem ao ponto de chegar a ser o terceiro estado com maior número de infectados, com mais de 15 mil casos e 997 mortes confirmadas. Foi neste dia 8 de maio que o isolamento social rigoroso entrou em vigor. No dia seguinte, o Ceará ultrapassou mais de mil mortes por covid-19. Em 17 de maio o Ceará era o segundo estado em número de casos, com 25.995, atrás apenas de São Paulo, e com 1.600 mortes.
A montagem da estrutura pública de saúde para o atendimento das vítimas de covid-19 incluiu a montagem de hospitais de campanha, o aluguel de hospitais privados fora de operação para a montagem de leitos de UTI, assim como a sua ampliação diária, a ocupação de hospitais públicos (estado e município) com leitos específicos para covid-19, importação direta de equipamentos e insumos e, sobretudo, a implantação de um grande número de testes (538 testes por 100 mil habitantes). Também foram adotadas várias medidas de assistência à população de baixa renda (alimentos, energia, gás de cozinha, dentre outros).
A dinâmica da expansão da epidemia no Ceará foi determinada pelas condições locais que apontam a desigualdade social e a densidade populacional como os fatores mais relevantes para entender o crescente número de casos. Fortaleza tem a maior densidade populacional do país, com 7.786 mil habitantes por quilômetro quadrado, de acordo com o censo de 2010. A estimativa do IBGE para 2018 foi de 8.390 hab/km2. Além disso o estado tem um baixo índice de desenvolvimento humano (0,754) e uma renda salarial média pouco acima de quatro salários mínimos. Estas condições ajudam a entender como a dinâmica da pandemia proporcionou altas taxas de incidência do vírus (mais de 265 casos por 100 mil habitantes) e uma alta taxa de mortalidade (18 mortes para cada 100 mil habitantes). Rapidamente os casos se deslocaram da parte mais rica e privilegiada da cidade para os bairros mais populosos e pobres.[i]
Mas, para além destes dados, nos chama a atenção o histórico epidemiológico do Ceará, o histórico geral da carga imunológica de sua população e a grande novidade que esta epidemia trouxe: a de não estar associada a uma grande seca. Grandes surtos epidêmicos atingiram o Ceará ao longo de sua história (cólera, varíola, sarampo, febre amarela, malária, dengue, chicungunya, dentre outras) e, na maioria das vezes, repetiu um padrão associado ao fenômeno climático da seca: baixa e irregular incidência de chuvas, ondas migratórias do interior (sertão) para a capital e cidades litorâneas, grandes aglomerações urbanas, isolamento forçado dos retirantes, como abarracamentos e campos de concentração, e disseminação de doenças, resultando em grande mortalidade.
Na seca de 1877 a 1880, a varíola foi responsável por um grande número de mortes. Em apenas um dia – 10 de dezembro de 1878 – foram contabilizados 1.004 mortos. Esta contabilidade pode ser registrada pois ao longo da segunda metade do século XIX o conhecimento estatístico teve grande avanço no Ceará, especialmente após 1863, com a publicação do “Ensaio Estatístico da província do Ceará”, de Thomáz Pompeu de Souza Brazil (1818-1877), o que nos permitiu ter um balanço dos movimentos de mortalidade em Fortaleza e no estado a partir dos dados coligidos por intelectuais, médicos e farmacêuticos, como Rodolpho Theóphilo (1863-1932) e Guilherme Studart (1856-1938), entre outros. Tendo em mãos as estatísticas de mortalidade no Ceará, Theóphilo comparou esta mortalidade às de outras regiões, avaliando a morbidade da epidemia. Um de seus exemplos de estatística médica de morbidade foi para o ano de 1878, onde morreram mais pessoas de varíola no Ceará que na guerra franco-prussiana.[ii] Estima-se que a varíola, a fome e outras doença mataram mais de 57 mil pessoas em Fortaleza em 1878. Nas secas que se sucederam a prática dos governos esteve voltada para a contenção das migrações e o isolamento dos retirantes nos chamados “campos da morte”, já bem documentados pela historiografia. O isolamento então praticado tinha este caráter eugênico de isolamento para restringir o contágio.[iii]
Uma grande novidade da pandemia de covid-19 no Ceará foi estar dissociada da seca e das migrações para o litoral, mas não livre do isolamento social, o que não evitou a rápida disseminação do vírus em Fortaleza. Também podemos problematizar como as questões sociais e ambientais favoreceram a disseminação da covid-19 ou ainda como a população, com o seu perfil imunológico, reagiu ao contato com a epidemia.
Alguma predisposição ao novo coronavírus poderia ser encontrada no histórico epidemiológico esta população? O campo da genética tem demonstrado que a carga imunológica de uma população guarda um registro que é alterado pelas questões ambientais e pela seleção natural.[iv] Assim, qual história evolutiva das variações diferenciam a resposta da população à exposição a um novo vírus, a uma nova doença? Esta problemática que procura interpretar a história demográfica/epidemiológica de uma população e o processo de seleção natural das variações genéticas que o sistema imunológico acumulou ao longo do tempo para a defesa coletiva dos indivíduos contra invasores pode ser uma forma de diálogo entre as ciências da saúde e as ciências sociais que nos ajude a pensar novos modelos de saúde pública e de avaliar estimativas de risco de uma população diante de um novo agente patológico. No caso do Ceará, investigar esta relação seria de suma importância para entender como o histórico imunológico reage a uma nova epidemia.
*Almir Leal de Oliveira é professor do Departamento de História da Universidade Federal do Ceará
[i] Fonte: IBGE e Painel Covid-19/Ministério da Saúde.
[ii] THEÓPHILO, Rodolpho – Varíola e vacinação no Ceará. Fortaleza: Tipografia do Jornal do Ceará, 1904, p.6.
[iii] PINHEIRO NETO, Armando – De curral da fome a campo santo: o campo de concentração de retirantes da seca de 1915 em Fortaleza. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em História, UniRio, 2014.
[iv] MUKHERJEE, Siddhartha – O gene: uma história íntima. São Paulo: Cia. das Letras, 2016.
Como citar este post:
OLIVEIRA, Almir Leal de. A covid-19 no Ceará. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Publicado em 1 de junho, 2020. Acesso em 1 de junho, 2020. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/a-covid-19-no-ceara
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