Cooperação científica do Brasil com a França e a Alemanha entre 1919 e 1940 é tema de estudo

Novembro/2014

Vinicius Zepeda | Faperj

  Magali: estudo sobre cooperação
científica no perìodo entreguerras
(Acervo Pessoal)

Na primeira década do século XX, o trabalho de pesquisa científica no Brasil adquiriu crescente projeção internacional e chamou a atenção das grandes potências mundiais, interessadas em aumentar sua influência política na região, tanto pela propaganda quanto pelo intercâmbio de pesquisadores. Em 1911, o Brasil foi o único país do continente sul-americano a participar e construir um pavilhão especial na Exposição Internacional de Higiene, em Dresden, Alemanha, no que foi um grande exemplo do prestígio brasileiro no cenário internacional. No evento – um espaço suntuoso e ricamente decorado –, uma sala de cinema exibia os primeiros filmes científicos brasileiros conhecidos, mostrando o combate à febre amarela e à recém-descoberta doença de Chagas.

“Os congressistas passaram ao salão de exibições cinematográficas, com capacidade para cem cadeiras, mas que comportava outras tantas pessoas, que assistiram às exibições de pé. Ao ver as fortes imagens do combate à febre amarela, assim como a recente descoberta da doença de Chagas e sua origem, e os esforços das pesquisas para chegar a tratamentos eficazes, não se contiveram e irromperam em palmas! Nunca pensei que o sucesso fosse tão completo. A nossa posição no mundo científico está perfeitamente garantida…”, declarou à época Oswaldo Cruz, diretor geral de Saúde Pública – cargo que atualmente corresponde ao de ministro da Saúde. O relato, apresentado no curta-documentário Cinematógrafo brasileiro em Dresden, serve como pano de fundo para ajudar a entender as origens da cooperação científica entre Alemanha, França e Brasil, alguns anos mais tarde, entre 1919 e 1940 – período imediatamente após a Primeira Grande Guerra, que se estende até o início da Segunda Guerra Mundial. O assunto é tema do projeto coordenado pela bióloga Magali Romero Sá, doutora em História das Ciências, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz e Cientista do Nosso Estado, da FAPERJ. Além do vídeo, uma exposição organizada na Fiocruz, artigos, monografias e teses fizeram parte do estudo.

Nessa época, o Brasil vivia o contexto da reforma urbana, iniciada ainda no governo do presidente Rodrigues Alves, quando foi deflagrada no País uma forte campanha contra algumas doenças, como a febre amarela, a peste bubônica, a varíola e a doença de Chagas. Em 1908, o sucesso de Oswaldo Cruz em vencer uma epidemia de febre amarela na cidade do Rio de Janeiro, com a ajuda de brigadas militares para combater os mosquitos, transforma o pujante Instituto Soroterápico Federal em um instituto de medicina experimental, rebatizado em 1909 como Instituto Oswaldo Cruz (IOC), em homenagem ao trabalho do sanitarista, que dirigiu a instituição até 1915.

  O Pavilhão Brasileiro na Exposição Internacional de
Higiene em Dresden era suntuoso e ricamente decorado
(Divulgação/Fiocruz)

“Na primeira metade do século XX, a união de pesquisa e ensino nas universidades e centros de pesquisa, institucionalizada pelos alemães no século XIX, serviu como modelo para o desenvolvimento científico em vários países. No caso da medicina, a Alemanha havia feito importantes descobertas na luta contra doenças infecciosas e desenvolvido o modelo clínico-universitário usado até hoje no mundo todo, associando investigação experimental, tratamento clínico e docência”, explica Magali. Mas a França não ficava muito atrás. Louis Pasteur havia descoberto que havia micróbios no ar e criado o método de pasteurização para higienizar o leite e o vinho, além de desenvolver a primeira vacina contra a raiva. Já Alphonse Laveran ganhara, em 1907, o prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina, por suas pesquisas sobre doenças causadas por protozoários. “Estas descobertas serviram não apenas para higienizar a Europa como para sanear essas doenças nas colônias na África e na Ásia, fortalecendo, também pelas pesquisas científicas, o imperialismo europeu nos dois continentes”, complementa.

No início do século XXa Alemanha cria o Instituto de Doenças Marítimas e Tropicais de Hamburgo (IDMTH), centro de excelência em doenças tropicais, que desenvolvia inúmeros estudos bem-sucedidos para tratamento de enfermidades em suas colônias. “Com a derrota na Primeira Grande Guerra, a Alemanha perde suas colônias africanas e seus pesquisadores, o campo de trabalho. Os alemães então passam a buscar parcerias com instituições latino-americanas, o que leva o Instituto de Hamburgo a estabelecer intercâmbio com cientistas brasileiros do IOC, interessados em aprimorar seus estudos e conhecer o trabalho dos germânicos”, afirma Magali. Um exemplo foi o pesquisador Henrique da Rocha Lima, do IOC, que serviu como incentivador da aproximação de médicos brasileiros e alemães. “Com o objetivo de difundir a ciência alemã na América Latina, em particular no Brasil, foi criada, em 1920, a Revista Médica de Hamburgo, que em 1922 coloca Rocha Lima como um de seus redatores. Ele incentiva a publicação de artigos escritos por brasileiros e escreve resenhas em português dos principais trabalhos publicados em periódicos alemães”, explica Magali. Rocha Lima, que de 1911 até 1928 trabalhou no IDMTH, fez três viagens ao Brasil – 1920,1922 e 1926 –, com o objetivo de estabelecer um programa de cooperação científica com o IOC.

A cooperação entre alemães e cientistas de Manguinhos serviu como uma forma de tentar assumir, no Rio de Janeiro, a liderança nas relações científicas internacionais, contrapondo-se à Sociedade de Biologia do Rio de Janeiro, sediada no IOC e diretamente ligada à Sociedade de Biologia de Paris. “O governo alemão também investia em propaganda para levar médicos brasileiros para cursos e palestras na Alemanha. Da mesma forma, a indústria farmacêutica germânica Bayer acompanhava a iniciativa e investia fortemente em propaganda, exportando medicamentos e folhetos sobre seus produtos, com reportagens endossadas por pesquisadores de renome, distribuídos aos médicos brasileiros. Além disso, iniciou na época sua produção de medicamentos no Brasil”, acrescenta. Nesse contexto, a Bayer contratou o médico brasileiro de ascendência germânica Renato Kehl para o cargo de gerente-técnico da fábrica brasileira. Ele implementaria ações para influenciar não somente o governo federal como também o mercado médico brasileiro. Uma das estratégias de Kehl foi a publicação de dois periódicos de divulgação: a Revista Terapêutica e O Farmacêutico Brasileiro.

     Revista O Farmacêutico Brasileiro: alemães usavam
da propaganda para atrair atenção de brasileiros
(Reprodução)

No caso da França, que procurou se aproveitar da perda de poder alemão depois da Primeira Grande Guerra, foi usada uma abordagem mais calcada em sua já conhecida influência cultural sobre o Brasil. Em 1907, foi criada a associação privada francesa Groupement des Universités et Grandes Écoles de France pour les Relations avec Collegé avec l’Amérique Latine (Groupement), para promover o intercâmbio de professores argentinos, brasileiros e mexicanos. A atuação do psicólogo George Dumas, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Sorbonne, foi considerada por muitos contemporâneos e historiadores essencial para a política cultural francesa no Brasil. Entre 1920 e 1938, Dumas realizou 17 missões na América Latina para, por meio de professores, cientistas, diplomatas e entusiastas da cultura francesa em geral, fundar instituições de intercâmbio. Em 1923, o Groupement criou o Instituto Franco-Brasileiro de Alta Cultura, com sede no Rio de Janeiro. “Neste ponto, vale explicar a diferença significativa, estabelecida pela política de cooperação científica dos franceses em relação à dos alemães. Para divulgar os trabalhos dos médicos latino-americanos, em particular dos brasileiros, os médicos franceses lançaram o periódico Revue de Médecine et de Chirurgie, escrito em francês, mas redigido fora da França. Ou seja, enquanto a Alemanha queria trazer sua ciência para cá, os franceses faziam o caminho inverso ao promover a ciência brasileira e latino-americana na França“, destaca Magali.

A pesquisadora chama a atenção ainda para o fato de que, enquanto os franceses procuravam expandir sua influência na América Latina em uma ação coordenada no plano intelectual, com o envio de conferencistas, fundação de centros intelectuais franco-brasileiros, envio de missões entre os dois países e diversas outras no atividades voltadas para a produção e difusão de trabalhos científicos tanto brasileiros quanto franceses, os alemães utilizavam a supremacia de seus produtos farmacêuticos como propaganda. Segundo o parasitologista francês Émile Brumpt, era necessário que “a boa vontade dos franceses superasse a vantagem financeira e a tenacidade dos alemães”.

Magali lembra ainda que, entre 1933 e 1942, com a ascensão do nazismo na Alemanha, o intercâmbio com cientistas alemães continuou, mas vários deles, sobretudo os judeus, fugidos do regime de Hitler, vieram para o Brasil e trabalharam nas universidades e instituições de pesquisa brasileiras em conjunto com franceses. Segundo a pesquisadora, os franceses deram espaço para os brasileiros divulgarem seus trabalhos na França, com intuito de conquistarem aliados no disputado cenário de concorrência por nichos de influência no cenário sócio-político-cultural. Já a Alemanha, apesar do método menos inclusivo, obteve sucesso ao divulgar sua ciência no país, principalmente devido aos avanços científico-tecnológicos e à descoberta de novos medicamentos. “Entre os anos de 1939 e 1945, com o espocar da Segunda Grande Guerra, os alemães foram novamente os grandes derrotados, enquanto os americanos se saíram os grandes vitoriosos, impondo sua supremacia na América Latina, entre vários aspectos, também por meio da indústria farmacêutica. Mas essa já é outra história”, conclui a pesquisadora, adiantando o tema de mais uma de suas pesquisas, ainda em fase inicial. “É sobre esse assunto que estamos nos debruçando no momento.”

Fonte: Faperj

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