Maio/2024
Testes clínicos realizados em setembro de 2020 revelaram a ineficácia da cloroquina e da hidroxicloroquina contra a Covid-19. No entanto, no Brasil, o governo de Jair Bolsonaro defendeu o seu uso até o final de 2022, desafiando o consenso científico e as agências reguladoras. A publicação, em janeiro de 2024, de um estudo mostrando a letalidade associada ao uso destes medicamentos na pandemia reativou os debates sobre a questão e motivou Luiz Villarinho Pereira Mendes, Claudia Garcia Serpa Osorio-de-Castro, Marilena Correa e Ilana Löwy a escreverem este artigo para o Blog de HCS-Manguinhos. Boa leitura!
A controvérsia em torno da cloroquina e hidroxicloroquina na pandemia da Covid-19: a interseção entre ciência e política
Luiz Villarinho Pereira MENDES[1], Claudia Garcia Serpa OSORIO-DE-CASTRO[2], Marilena CORREA[3], Ilana LÖWY[4]. Especial para o Blog de HCS-Manguinhos.
A recente publicação de um estudo (Pradelle et al. 2024) reacendeu o debate sobre os efeitos nefastos da promoção do uso da Hidroxicloroquina para tratamento da Covid-19: 17.000 pacientes na França, Itália, Espanha, Turquia e EUA teriam morrido em decorrência do tratamento com este medicamento durante a pandemia. Seria particularmente interessante aplicar a metodologia utilizada por Pradelle et al. para estimar quantas mortes poderiam ser atribuídas ao uso de CLQ/HCQ no Brasil, uma vez que as políticas públicas brasileiras incentivaram o uso massivo desses medicamentos, até dezembro de 2022.
A cloroquina (CLQ) e a hidroxicloroquina (HCQ), inicialmente reposicionadas para o SarsCov-2 em 2020, ganharam atenção global, com a divulgação de estudos propagandeados pelo médico e microbiologista francês Didier Raoult. Apesar das controvérsias nos debates iniciais, testes clínicos realizados em setembro de 2020 revelaram a ineficácia de ambos os medicamentos contra a Covid-19. No entanto, o governo brasileiro, na gestão Bolsonaro, persistiu na defesa de seu uso até o final de 2022, desafiando o consenso científico e as agências reguladoras. A imposição do uso de medicamentos ineficazes, e mesmo tóxicos para alguns pacientes, caracterizam a interseção entre a política pública e a ciência no Brasil, expressas em práticas antidemocráticas na administração Bolsonaro.
O surgimento de um misterioso surto de pneumonia na China no final de 2019, que rapidamente se transformou em uma crise global, culminou com a declaração pela Organização Mundial da Saúde (OMS) da Covid-19 como uma pandemia, em março de 2020. A busca por tratamentos eficazes se intensificou e nesse contexto Raoult surgiu como uma figura-chave na promoção da hidroxicloroquina. Apesar das críticas metodológicas dirigidas a seus estudos, os resultados apresentados por Raoult atraíram grande atenção de figuras influentes, como os presidentes Trump e Bolsonaro, além de plataformas de mídia como a Fox News.
A popularidade do pesquisador francês em certos círculos se confrontava cada vez mais intensamente com o ceticismo de especialistas em doenças infecciosas, devido à falta de rigor em seus estudos. A Sociedade Internacional de Quimioterapia antimicrobiana (ISAC) criticou-o publicamente, e, entre inúmeras falhas apontadas na condução de seus testes clínicos, indicava-se a inexistência de um grupo controle e a falta de randomização na escolha de voluntários de pesquisa (critérios importantes para a produção de evidências em ensaios clínicos).
A popularidade de Raoult em Marselha se estendeu aos oponentes da vacinação contra a Covid-19 polarizando ainda mais as opiniões sobre sua credibilidade. No entanto, contestações legais e acusações de conduta irregular em suas pesquisas como dito acima, conduziram a processos legais contra o pesquisador iniciados pelo governo francês em 2022.
No Brasil, Bolsonaro endossou com entusiasmo o uso off-label de CLQ/HCQ, politizando ainda mais a gestão da pandemia com destaque para a promoção da estratégia do chamado “tratamento
precoce”. Como no caso de Raoult, foi um forte oponente e divulgador das ideias anti-vacina, tendo atrasado a compra do principal artefato de saúde na prevenção da doença.O envolvimento dos militares brasileiros na produção de cloroquina acrescentou outra camada de significado político ao reposicionamento da CLQ/HCQ para Covid-19.
O uso de CLQ/HCQ continuou no Brasil, e mesmo se intensificou após o surgimento da variante ômicron no final de 2021. Integrando o chamado Kit Covid que reunia outros medicamentos igualmente ineficazes, não apenas teve suas vendas aumentadas em drogarias pelo país como passou a ser distribuído em unidades públicas de saúde de diversos municípios mais alinhados com o governo federal. Somente em dezembro de 2022, com o final da administração de Bolsonaro, encerrou-se a carreira da CLQ/HCQ contra Covid-19 no Brasil.
A justificativa para o endosso ao uso da CLQ/HCQ pelo governo federal baseou-se no princípio da autonomia médica: argumentou-se que os médicos deveriam ter a liberdade de prescrever tratamentos que considerassem adequados. No entanto, com o acúmulo de evidências científicas contrárias, seu uso contínuo tornou-se ética e legalmente questionável.
A instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado Federal brasileiro revelou e documentou inúmeras violações éticas, deontológicas, legais e científicas relacionadas ao uso off-label da CLQ/HCQ. Entre elas, o exemplo de empresa que obrigava seus profissionais a prescreverem tratamentos ineficazes do Kit Covid, além de conduzir testes clínicos não autorizados pelos pacientes ou suas famílias em suas “rotinas de tratamento”. A empresa, que possui hospitais próprios, chegou a implementar uma prática de distribuição de informações falsas, ocultando informações do certificado de óbito e inflando artificialmente as estatísticas de pacientes curados.
Se, na França, Didier Raoult enfrentou processos legais e suas propostas de manejo clínico da Covid-19, antes celebrada por alguns, caiu em desgraça, no caso brasileiro, entretanto, médicos que endossaram o uso antiético da CLQ/HCQ não sofreram sanções semelhantes.
Toda essa controvérsia que alcançou fortemente o debate público, o envolvimento nas mídias sociais, realmente disseminou uma inovação social, cujo ponto central é a democratização da ciência. Enquanto alguns equiparavam o ativismo online ao envolvimento do cidadão, outros o viam como uma ferramenta para políticos populistas desafiarem o consenso científico. O verdadeiro ativismo, fundamentado em uma compreensão dos processos científicos, tem como objetivo revelar os vieses e as limitações inerentes ao conhecimento especializado e as largas margens de manobras políticas que tais dificuldades permitem.
No Brasil, as agências reguladoras de saúde, como a Anvisa, desempenharam um papel fundamental no combate às suposições não baseadas em evidências. A Anvisa nunca endossou o uso da CLQ/HCQ ou de outros tratamentos não comprovados para a Covid-19. Críticas ao “Kit Covid” surgiram dentro do próprio Ministério da Saúde, com a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologia (Conitec) destacando a ineficácia desses tratamentos sem evidências científicas robustas.
No entanto, os desafios persistiram nas estruturas de governança de saúde do Brasil. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) revelou interferência no trabalho da Conitec e a influência de um “Gabinete Paralelo” que defendia a CLQ/HCQ e outros medicamentos ineficazes. Apesar de o relatório da Conitec indicar a ineficácia do “Kit Covid”, ele enfrentou a oposição de representantes do Ministério da Saúde e do Conselho Federal de Medicina.
O debate sobre a CLQ/HCQ destacou as tensões entre as evidências científicas, a participação democrática e a regulamentação de medicamentos. Embora a mídia social tenha proporcionado uma plataforma para o engajamento público, ela também se tornou um campo de batalha para narrativas concorrentes, desafiando o papel da experiência na formação de políticas de saúde pública. A regulamentação eficaz de medicamentos exige um equilíbrio entre o rigor científico, a responsabilidade democrática e a proteção da saúde pública.
A trajetória da hidroxicloroquina durante a pandemia da Covid-19 na França e no Brasil ilustra as tensões entre democracia e ciência, autonomia do paciente e medicina baseada em evidências. Inicialmente aclamada como um tratamento milagroso, o entusiasmo persistiu apesar das primeiras indicações de ineficácia e efeitos adversos. Na França, o debate terminou em 2020, com apenas alguns continuando a defender seu uso, culminando em uma investigação oficial e sanções contra seu principal proponente, Didier Raoult. No entanto, no Brasil, uma postura “negacionista” propagada pelo governo Bolsonaro alimentou controvérsias, deixando de lado o consenso científico e promovendo o uso da CLQ/HCQ por largo espaço de tempo, e no decorrer de uma pandemia, que matou mais de 700 mil pessoas.
Apesar das evidências de irregularidades, incluindo um relatório do Senado, o apoio do governo à CLQ/HCQ persistiu até o final do governo, ilustrando a politização da saúde pública. Isso destaca a complexa interação entre medicina, política e saúde pública.Como declarado por Rudolf Virchow: “A medicina é uma ciência social, e a política nada mais é do que a medicina em uma escala maior”.
Este tema é mais profundamente discutido em artigo escrito pelos autores para o número especial intitulado “Políticas de combate à pandemia da Covid 19, democracia sanitária e direito à saúde” com previsão de publicação pela revista “Estudos de Sociologia” em 2024.
Referências Bibliográficas
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MENDES, LVP; OSORIO-DE-CASTRO, CGS; CORREA, MCDV; LÖWY, I. The careers of chloroquine and hydroxychloroquine as “miraculous” anti-COVID-19 drugs: narratives from France and Brazil. Estudos de Sociologia (no prelo). 2024.
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[1] Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca – Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Pos Doc no Departamento de Políticas de Medicamentos e Assistência Farmacêutica (NAF). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9027-0287. E-mail: luizvillarinho@gmail.com
[2] Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca – Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz), Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Pesquisadora sênior do Departamento de Políticas de Medicamentos e Assistência Farmacêutica (NAF). ORCID: http://orcid.org/0000-0003-4875-7216. E-mail: claudiaosorio.soc@gmail.com
[3] Instituto de Medicina Social Hésio Cordeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. (IMSHC/UERJ). Rio de Janeiro, RJ. Professora adjunta Sênior. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1742-8639. E-mail: correamarilena@gmail.com. :
[4] Institut National de la Santé et de la Recherche Médicale (INSERM) Paris, France. Pesquisadora Emérita no Centre de recherche médecine, sciences, santé, santé mentale, Société (CERMES3). ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6963-0578. E-mail: ilana.lowy@cnrs.fr
Como citar:
A controvérsia em torno da cloroquina e hidroxicloroquina na pandemia da Covid-19: a interseção entre ciência e política, por Luiz Villarinho Pereira Mendes, Claudia Garcia Serpa Osorio-de-Castro, Marilena Correa e Ilana Löwy. Blog de HCS-Manguinhos, publicado em 13 de maio de 2024. Disponível em https://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/a-controversia-em-torno-da-cloroquina-e-hidroxicloroquina-na-pandemia-da-covid-19-a-intersecao-entre-ciencia-e-politica/
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