Outubro/2014
Por Vasco Mariz | História Viva
Graças ao Tratado de Madri, de 1750, Alexandre de Gusmão, o barão do Rio Branco do século XVIII, assegurou à Coroa portuguesa e ao que se tornaria o Brasil vastos territórios ao sul do país e sobretudo na Amazônia. Seus feitos hoje são pouco conhecidos, bem como os dos misteriosos padres matemáticos italianos trazidos à América para determinar os limites da Amazônia portuguesa.
Alexandre, nascido em Santos em 1695, era filho do cirurgião-mor de um presídio daquela cidade. Teve numerosos irmãos e um deles ficou célebre em Portugal bem antes dele: Bartolomeu de Gusmão, o “padre voador”, o inventor da passarola, modelo de aeróstato de ar quente. Bartolomeu mandou trazer do Brasil o irmão Alexandre, de 15 anos e já destacado em seus estudos de ciências matemáticas. O rapaz alto, de olhos pequenos, sempre polido e sem afetação, agradou a D. João V, que o mandou estudar em Paris, onde serviu como secretário da embaixada portuguesa. Gusmão frequentou cursos de matemática e jurisprudência, conheceu personalidades e estudou francês. Ali passou cinco anos e em 1720 regressou a Lisboa.
Gusmão frequentou cursos de matemática e jurisprudência, conheceu personalidades e estudou francês. Ali passou cinco anos e em 1720 regressou a Lisboa. Aos 25 anos, já gozava de suficiente prestígio para ser enviado pelo rei a Roma a fim de tentar destrinçar questões pendentes que Portugal tinha com a Santa Sé. O papa Benedito XIII gostou tanto do jovem Alexandre que lhe deu o título de “príncipe romano”, do qual ele declinou. Só regressou a Lisboa em 1729, com 34 anos.
D. João V, então, elevou-o a “fidalgo da casa real” e “escrivão da puridade” e o encarregou dos negócios com o Vaticano e, pouco depois, também daqueles do Brasil. Em 1735, ampliou sua área com os problemas europeus. Em 1743 foi nomeado conselheiro e ministro do famoso Conselho Ultramarino, onde realizaria notável trabalho na administração portuguesa no Brasil. Incentivou a emigração dos Açores e da ilha da Madeira e colonizou os estados do sul do país com grupos de 60 casais de agricultores.
Camilo Castelo Branco definiu Gusmão como “o mais avançado espírito do seu século”. Essa era a personalidade que D. João V escolheu para negociar com o mundo espanhol os diversos problemas pendentes das fronteiras do Brasil, ao norte e ao sul. Os resultados seriam espetaculares. Se as negociações do barão do Rio Branco nos deram quase 900 mil km² de novos territórios, Gusmão nos legou mais do que o triplo dessa área.
O Brasil da sua época, de acordo com a linha de Tordesilhas, começava na altura de Belém do Pará e terminava em São Francisco do Sul (SC). Graças ao Tratado de Madri, Gusmão conseguiu empurrar nosso território na Amazônia até as faldas dos Andes. Ao sul, criou uma fórmula realista para solucionar a questão da Colônia do Sacramento, alargando consideravelmente as províncias do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Sebastião José de Carvalho, o marquês de Pombal, apesar de não gostar pessoalmente de Gusmão, talvez enciumado, teve a clarividência de apoiar firmemente quase todas as medidas por ele previstas.
Logo após a assinatura do Tratado de Madri, D. João V veio a falecer e seu sucessor D. José I trouxe para o poder o eficientíssimo, mas temível, marquês de Pombal. O prestígio de Gusmão era notável na época, e isso não devia agradar muito ao vaidoso primeiro ministro. O choque entre os dois não tardou a acontecer e Alexandre foi afastado e até perseguido. Ele tentou defender-se com seu documento Impugnação, mas o poder de Pombal era tal que o esmagou. Um incêndio suspeito em sua casa destruiu o prédio e lá faleceu sua esposa, Maria Teixeira Chaves, queimando-se a sua preciosa biblioteca. Um ano depois, pobre e em quase completa desgraça, Gusmão faleceu, em 30 de dezembro de 1753. Tinha 58 anos apenas.
Bem antes de Madri, o governo português já vinha utilizando padres matemáticos e astrônomos para fixar a verdadeira posição das terras portuguesas no Brasil em relação ao meridiano do Tratado de Tordesilhas. Em 1729, os padres Domenico Capassi, napolitano (1694-1736), e Giovanni Battista Carbone (1694-1750) foram contratados por D. João V para trabalhar em Lisboa, onde criaram um observatório astronômico, e depois vieram para o Rio de Janeiro para melhor ordenar as cartas geográficas. Construíram um observatório astronômico no morro do Castelo e fizeram um útil levantamento da costa sul do Brasil. A seu lado, estava o também sacerdote Diogo Simões, lisboeta.
Os padres trabalharam nada menos que 18 anos, em várias partes do Brasil, com a sistemática finalidade de fazer estudos preparatórios para delimitar a soberania política entre os dois impérios, português e espanhol, em eventual negociação. Ao preparar a documentação para a defesa das teses lusas, Gusmão guardou completo segredo sobre os trabalhos realizados por aqueles sacerdotes matemáticos.
Os mapas dos matemáticos eram segredo de Estado. Por ordem de el-rei, havia sempre duas versões: a verdadeira e a que se deixava filtrar para os espanhóis. A elaboração desses mapas tinha óbvio propósito político a médio prazo. Na época sabia-se muito bem que a Colônia do Sacramento estava muito longe do meridiano de Tordesilhas, o que dificultava bastante as pretensões portuguesas. Jaime Cortesão afirmou que até as vésperas do Tratado de Madri, os jesuítas do Paraguai sabiam da missão dos padres matemáticos, mas ignoravam seu resultado. A posição exata do meridiano de Tordesilhas era ciosamente ocultada.
Durante as negociações do Tratado em Madri, a delegação lusa se esforçou, sobretudo, por encontrar uma solução definitiva para a Colônia do Sacramento, último bastião português na foz do rio da Prata, bem defronte a Buenos Aires. A fortaleza lusa era um verdadeiro desafio ao poderio espanhol no Prata e fonte de continuadas escaramuças militares. Na realidade, os portugueses tinham pouca serventia para aquela praça-forte, mas insistiam em mantê-la como moeda de troca para assegurarem a tranquilidade no Uruguai e nas províncias do sul, sempre vulneráveis a investidas espanholas. Comerciantes portugueses e brasileiros menos escrupulosos utilizavam a colônia como centro de contrabando. O momento era oportuno porque em 1746 falecera o rei espanhol Felipe V e seu filho e herdeiro do trono, Ferdinando VI, era casado com a infanta portuguesa D. Maria Bárbara, que exercia muita influência sobre o marido. Segundo Cortesão, “se o seu real esposo era doente e inepto e ela era mais capaz. Bárbara de Bragança apoiou Alexandre de Gusmão com prudência, sensatez e moderação”.
As negociações foram iniciadas e Gusmão sempre teve o apoio da rainha portuguesa da Espanha. Ele aconselhava seus delegados a mostrar que “Portugal não procurava ganhar terreno, mas só regular os confins por balizas conspícuas e indubitáveis, para evitar dissensões no futuro”. Segundo Cortesão, o diplomata “deixava entrever nas negociações com os espanhóis, com prudentes negaças, o engodo da cedência da Colônia do Sacramento”.
As relações entre os dois países melhoravam rapidamente e na época ambas as partes estavam cansadas das disputas sobre a colônia, sempre com gastos consideráveis e sangue derramado. Nas negociações houve muita objetividade das duas Coroas. Gusmão em Lisboa assumiu a direção do litígio, adotando atitude completamente diferente de como era antes tratada a questão. Ele aceitava a entrega da Colônia do Sacramento em troca de concessões substanciais dos espanhóis. Ele visava sobretudo à posse de territórios imensos ocupados esparsamente por missões religiosas, bandeirantes e aventureiros nas regiões de Goiás, Mato Grosso e Amazonas, e suas ambições chegavam aos vales dos rios Negro, Branco e Japurá, ao norte da Amazônia. O neto do barão, Miguel do Rio Branco, descreve os preparativos: “Gusmão trabalhava entre os mapas e as informações recebidas dos governadores dessas regiões, das missões carmelitas e de todo e qualquer funcionário que lhe pudesse enviar algo de positivo. De Lisboa, ele bombardeava o embaixador português com sucessivas cartas, minutas e propostas” (Alexandre de Gusmão e o Tratado de 1750, Fundação Alexandre de Gusmão, 2010).
Em relação à Amazônia, Gusmão assim se manifestou nos documentos iniciais. “No país que corre entre os rios Amazonas e Orinoco há muitos carmelitas portugueses pelo rio Negro acima e por outros que nele desaguam, oito missões. (…) Tornamos a propor que fiquem os limites pelas vertentes das águas que dividem a sobredita serrania para o Amazonas e para o Orinoco, sem embargo de tocar à repartição da Espanha tanto maior porção de terras desocupadas, quanto vai da mesma serrania até as primeiras missões espanholas da banda setentrional do Orinoco, o que é um vasto território”.
Gusmão jogou sempre com a preocupação básica da Coroa espanhola de que a Colônia do Sacramento era uma ameaça permanente à sua soberania sobre o vale do rio da Prata, essencial para a tranquilidade da exportação da prata da Bolívia pelo porto de Buenos Aires. Ele tentou fazer com que as disposições de Tordesilhas se voltassem contra os espanhóis, pois eles haviam superado amplamente, do outro lado do mundo, nas ilhas Molucas e Filipinas, a linha estabelecida pelo papa em 1494. Pelo Tratado de Utrecht, a Espanha deveria devolver as Filipinas a Portugal, mas isso era impensável para Madri. A esperteza foi tentar convencer os espanhóis de que era vantajoso para eles que Portugal abrisse mão das Molucas e das Filipinas em troca das áreas desocupadas de Goiás, Mato Grosso e da Amazônia. Jaime Cortesão, no livro citado, nos traça um quadro preciso dessas extraordinárias negociações em que Alexandre convenceu os espanhóis a aceitar o chamado “Mapa das Cortes” como base das negociações.
Recentemente a historiadora Júnia Ferreira Furtado fez uma pesquisa na Biblioteca Brasiliana de Robert Bosch, de Stuttgart, que resultou em livro interessante que bem ilustra os meandros da preparação do Tratado de Madri, de 1750. Em O mapa que inventou o Brasil, Júnia relata ainda as atividades de outro personagem que contribuiu bastante para o êxito das negociações: o embaixador português D. Luís da Cunha, que serviu Portugal com muita curiosidade e eficiência na França, Países Baixos e na Inglaterra. Dele partiu a noção de que a informação cartográfica seria um grande trunfo para as discussões sobre os limites das possessões das duas Coroas na América.
O tratado finalmente foi assinado em Madri em 13 de janeiro de 1750 pelo visconde Tomás da Silva Teles, em nome do rei de Portugal, e por D. José Carbajal y Lancaster, em nome do rei da Espanha. Ambos reconheciam ter violado Tordesilhas e acabavam com sua vigência – uma espécie de mea-culpa comum. Como escreveu Miguel do Rio Branco, “chegamos aqui à norma mais importante e mais revolucionária do tratado: a transferência para o direito público da aplicação, até então reservada ao direito privado, do princípio do uti possidetis (segundo o qual, quem ocupa o território tem direito sobre ele), que um século e meio mais tarde o barão do Rio Branco faria triunfar em julgamentos internacionais”.
Pelo artigo XIII do tratado, Sua Majestade Fidelíssima cedeu à Coroa da Espanha a Colônia do Sacramento e todo o seu território adjacente na margem setentrional do rio da Prata, bem como a navegação nesse importantíssimo rio, o qual passava a pertencer inteiramente à Espanha. Madri obtinha assim o que mais a preocupava, mas o preço que Gusmão a fez pagar por isso foi enorme. Os próprios espanhóis não avaliavam bem o que perdiam. Eles não tinham a noção exata das distâncias na América do Sul, mas Gusmão sabia. Por sua vez no artigo XIV a Espanha entregava a Portugal as regiões do Amazonas, da margem do rio Guaporé e, ao sul, dos chamados Sete Povos das Missões, devendo as aldeias dos índios ser trasladadas da margem oriental do rio Uruguai para “aldear em outras terras de Espanha”. Tal decisão criaria gravíssimos problemas no futuro próximo, mas essa é uma outra estória. Foi fixado o prazo de um ano para efetuar as cessões que iriam “establecer una sólida y durable armonia entre las dos coronas”. Não seria bem assim, mas logo a demarcação da Amazônia seria posta em prática por Pombal, selando seu destino como parte do território brasileiro.
VASCO MARIZ é diplomata e historiador
Fonte: História Hoje
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