Memórias da ocupação da cidade do Rio de Janeiro

Setembro/2014

Vilma Homero | Boletim da Faperj

Vista aérea da Praça da República, antiga Aclamação (embaixo, à esquerda), do Ministério da Guerra (direita) e da Estação Pedro II, atual Central do Brasil, em fins do séc. XIX.

Vista aérea da Praça da República, antiga Aclamação (embaixo, à esquerda), do Ministério da Guerra (direita) e da Estação Pedro II, atual Central do Brasil, em fins do séc. XIX.

De um lado, a lagoa do Boqueirão; do outro, o mangal de São Diogo. Por suas muitas lagoas e áreas de mangue, em fins do século XVIII, a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro era considerada uma região insalubre, espremida entre os morros da Conceição, do Castelo, de São Bento e de Santo Antonio, por onde, dizia-se, os ares não circulavam. Mas era também nessa várzea que se espalhavam as 37.800 almas que a habitavam.  Seus moradores eram ainda obrigados a conviver com as constantes enchentes que aconteciam a cada chuva mais forte.

Lembrando esse começo pouco promissor, a historiadora e planejadora urbana Lucia Silva, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ)campus Nova Iguaçu, conta um pouco da história da ocupação da cidade em seu livro Memórias do urbanismo na cidade do Rio de Janeiro 1778 – 1878 – Estado, Administração e Práticas de Poder. Para sua publicação, o livro contou com recursos do Auxílio de Editoração (APQ 3), da Faperj.

Unindo história e planejamento urbano, o trabalho da pesquisadora fez jus à menção honrosa no prêmio Anpur, que em sua última edição recebeu o nome da socióloga Ana Clara Torres Ribeiro, falecida no ano anterior. “A Ana Clara foi uma das organizadoras dessa premiação; ela era também uma referência no campo de planejamento urbano. Historiadora que migrou para o planejamento urbano, seus esforços de pesquisa contribuíram para que o Rio de Janeiro deixasse de ser mero cenário para ser trabalhado a partir da materialidade da cidade. Como uma de suas alunas, sinto-me honrada com o prêmio”, explica Lucia.

Não foi à toa, portanto, que, quando, premido pelas circunstâncias políticas, D. João VI se viu na iminência de vir instalar-se, com toda a sua corte, nas terras inóspitas da então colônia, uma de suas primeiras providências foi consultar seu físico-mor para saber das condições do lugar. Para atender à consulta real, o físico aproveitou os relatórios feitos pelos vereadores da Câmara do Rio de Janeiro, que davam conta da situação da cidade e faziam sugestões para melhoramentos em sua salubridade. D. João veio e aqui encontrou uma cidade atrasada, de ruas estreitas, cujo núcleo se concentrava nos arredores do Paço imperial. Bem diferente das urbes europeias, era basicamente movida pelo braço escravo, força produtiva responsável pela base da economia.

Fotografia de começo do século XX mostra a área do Mangue, ladeada por suas palmeiras imperiais.

Fotografia de começo do século XX mostra a área
do Mangue, ladeada por suas palmeiras imperiais.

As grandes transformações urbanas aconteceram em momentos distintos. O primeiro deles foi entre 1778 e 1790, quando o vice-rei Luiz de Vasconcelos e Souza, conde de Figueiró, encarregou Valentim Fonseca e Silva, o liberto que se tornou conhecido como Mestre Valentim, de obras públicas para melhorar o saneamento e o precário abastecimento de água da cidade. Ele foi o construtor de vários equipamentos urbanos, entre eles os chafarizes da Pirâmide, das Saracuras, das Marrecas e do Lagarto, fatores imprescindíveis à época para a ocupação de novas regiões.

“Como liberto, ele sutilmente incorpora a encomenda às necessidade dos usuários escravos, adequando-os, por exemplo, em altura e dotando-os de bancada que os tornasse confortável a quem fosse abastecer-se de água”, explica a historiadora.

Como ela aponta, a construção do chafariz da lagoa do Boqueirão da Ajuda, ao sul e para além dos limites urbanos de então, o aterro de todo seu entorno e o traçado de novos arruamentos na área constituem-se em um vetor da expansão da cidade naquela direção. “Ali, além de buscar soluções inteligentes na construção do que seria o Passeio Público, Valentim, mais uma vez e de forma sutil, posiciona-se politicamente ao instalar um chafariz em seu interior. Com isso, permite aos escravos frequentar o espaço, um jardim de uso exclusivo da aristocracia.”

No período posterior, é o discurso de médicos e engenheiros que ganha força. “Foram os primeiros a falar da cidade. Os relatórios escritos para D. João são usados vinte anos mais tarde para nortear os melhoramentos urbanos.” A pedido do príncipe regente, foi traçada uma planta da cidade, finalizada em 1812. A criação da Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil [órgão instituído em 1808 para implantar e dirigir a nova estrutura de polícia e segurança pública da Corte do Rio de Janeiro e de todo o território do Brasil], a planta e o estudo encomendado são medidas que sinalizam para o desejo de ordenar a cidade, de preferência nos moldes de Paris, a Cidade das Luzes.
Analisando elementos como topografia e proximidade dos mares, o discurso médico alertava contra os “ares úmidos”, que junto com o calor, seriam propagadores de doenças. Assim, o aconselhável seria a ocupação no sentido longitudinal, e não no latitudinal. Para incentivar que isso acontecesse, a Intendência isentou da décima urbana (imposto para os prédios urbanos em condições habitáveis dentro dos limites das cidades e vilas que, segundo as demarcações das câmaras, fossem localizados à beira-mar; o tributo consistia no pagamento anual para a Real Fazenda, por parte dos proprietários, de 10% dos rendimentos líquidos dos prédios) aqueles que construíssem edificações na chamada Cidade Nova, induzindo a ocupação no sentido do interior.

Lucia Silva, historiadora e planejadora urbana.

Lucia Silva, historiadora e planejadora urbana.

Entre 1842 e 1843, o engenheiro do exército Beaurepaire Rohan, em licença médica de suas atribuições e à disposição da Câmara dos Vereadores, ocupa seu tempo livre escrevendo um relatório sobre o Rio de Janeiro. Intimamente ligado à corte, Rohan propõe formas de solucionar os problemas urbanos recorrentes – arruamentos, matadouro, cemitério e arborização – sob a ótica de uma nova tecnologia. “Enquanto os Códigos de Postura em vigor falam de proibições e regras de uso, Rohan procura traçar modos para encaminhamento e resolução desses problemas”, compara Silva. Ela acrescenta que o Rio de Janeiro da década de 1840 vivia as questões do fim próximo do tráfico negreiro – decretado em 1850 –, e da consequente subida no preço da mão de obra escrava, além de conviver com várias epidemias, como febre amarela, varíola e tuberculose. Para combater essas questões, o engenheiro já sugeria o alargamento de ruas e vias, arborização nos moldes franceses, expansão para a Zona Norte e o fim da escravidão.

“Enquanto existissem os Tigres – escravos encarregados pelo transporte de dejetos e seu despejo nas praias –, por exemplo, não se pensaria em planejar uma rede de esgotamento sanitário. Como não fazia parte de uma demanda de Estado, no entanto, o relatório de Rohan foi engavetado, só sendo lido 20 anos mais tarde, em 1860.”

Naqueles idos de 1840, no entanto, os bondes de tração animal rodam até os limites da cidade: de um lado em São Cristóvão, na Zona Norte; e, do outro, até a Aldeia dos Ingleses, hoje Humaitá, na Zona Sul. “As áreas próximas às praias não eram valorizadas; pelo contrário, eram consideradas areais sem valor. Os ‘ares marinhos’ eram vistos apenas como salutares para convalescentes e doentes em busca de recuperação”, explica Silva. Somente em 1876 é traçado um plano de melhoramentos para o Rio de Janeiro, encomendado pelo governo federal a três engenheiros – Marcelino Ramos da Silva, Jerônimo Jardim e Pereira Passos. À época, ele foi implementado apenas em parte, na região da Praça Onze e seus entornos. No entanto, é este plano que, no início do século XX, serve de base às reformas urbanas do próprio Pereira Passos, durante sua gestão na prefeitura.

“Por seu discurso de melhoramentos para a cidade, geralmente associamos Pereira Passos ao Bota-Abaixo, a uma verdadeira transformação urbana no Rio de Janeiro. Realmente, durante sua gestão, o governo federal abriu a Avenida Rio Branco e construiu o porto do Rio de Janeiro, enquanto Passos fez um prolongamento da Avenida Estácio de Sá, abrindo a Rua Mem de Sá.”

A cidade vai crescendo, tanto a partir das necessidades de seus habitantes quanto impulsionada por essas iniciativas. O primeiro plano diretor, efetivamente planejado como tal, só seria traçado em 1930, o conhecido plano Agache. “Como o meu estudo abrange os 100 anos entre 1778 e 1878, o século XX ficou fora da pesquisa. A partir daí, já é outra história…”, conclui Silva.

Fonte: Boletim da Faperj

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Da higiene à construção da cidade: o Estado e o saneamento no Rio de Janeiro, artigo de Eduardo Cesar Marques

Humores e odores: ordem corporal e ordem social no Rio de Janeiro, século XIX, artigo de Tânia Andrade Lima

A cidade imaginada ou o imaginário da cidadeartigo de Maria Aparecida Lopes Nogueira

História do lugar: um método de ensino e pesquisa para as escolas de nível médio e fundamentalartigo de Joaquim Justino Moura dos Santos

Como viviam e morriam os escravos no Brasil?, suplemento temático Saúde e Escravidão (dez/2012)

Leia no blog de HCS-Manguinhos:

O Rio do morro ao mar: demolições e comemorações em 1922

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