Um rural sob medida?

Julho/2014

A ideia de que o rural não se resume ao agrícola, e de que existe um rural para além da produção agropecuária stricto sensu, tornou-se a tônica de uma intensa atividade intelectual levada a cabo durante a década de 1990, no Brasil e em outros países do planeta, por pesquisadores ligados aos mais diversos campos do conhecimento. As implicações dessas pesquisas são bastante conhecidas. Elas serviram para ampliar o reconhecimento acerca da ruptura quanto ao mito fundador da sociologia rural que estabeleceu a oposição campo/cidade, classificando tais noções como realidades espaciais e sociais descontínuas.

Do ponto de vista político e institucional, esses estudos foram decisivos para renovar a retórica da atuação do Estado brasileiro na esfera do desenvolvimento e na gestão das políticas públicas, contribuindo, inclusive, para a reformulação da metodologia de coleta de dados censitários e dos sistemas de ordenamento do território no caso dos países desenvolvidos.

De um modo conciso, poder-se-ia dizer que as alusões aos espaços não densamente urbanizados deveriam ser feitas no plural – ruralidades –, evidenciando o reconhecimento acerca da extensão dessas mudanças. Mas o instigante estudo realizado pelos cientistas sociais Flávio Sacco dos Anjos e Nádia Velleda Caldas, da Universidade Federal de Pelotas, vai mais além do que a simples constatação desses fatos. Os autores partem da premissa de que estamos vivendo os efeitos de uma transição operada no plano das representações sociais do rural que emerge, dentre outros aspectos, a partir da importância crescente dos valores pós-materialistas e pelo que se veio a chamar de era do “pós-produtivismo”.

Em boa medida, Sacco dos Anjos e Caldas se identificam com a postura assumida por Redclift e Woodgate (1994) quando estes afirmam que as representações sociais contemporâneas do rural encontram-se intimamente associadas a um sentimento de perda que acompanhou a civilização industrial moderna. O vaticínio dos autores britânicos é explícito ao afirmar que o campo, “tal como as catedrais”, assume um estatuto de herança porque mostra o nosso passado. Todavia, também é certo que por debaixo dessa ênfase atávica e romântica se escondem os efeitos decorrentes da idealização do rural, ou do que Sacco dos Anjos e Caldas definem como uma ruralidade “sob medida”. Converter atributos ambientais em artigos consumíveis, em paisagem ou cenário para ser reconfigurado e adornado para a apropriação estética por parte dos turistas, e da sociedade em geral, nem sempre reflete, ou está de acordo, com as expectativas e práticas das pessoas ‘do lugar’.

Esse conjunto de aspectos nos leva a pensar sobre a importância de compreender como se dão os processos que produzem esse rural recodificado e as circunstâncias que favorecem a sua emergência no quadro de um discurso mais amplo sobre a ruralidade, que hoje se impõe, em maior ou menor medida, em nossas sociedades. A construção social do rural reflete o momento histórico que vivemos, e nem de longe pode ser visto como um campo livre de tensões, conflitos e contradições.

Leia em HCS-Manguinhos:

Da medida do rural ao rural sob medida: representações sociais em perspectiva”, artigo de Flávio Sacco dos Anjos e Nádia Velleda Caldas (vol.21, no.2, abr./jun. 2014)


Veja o sumário desta edição de História, Ciências, Saúde – Manguinhos (vol.21, no.2, abr./jun. 2014)

Como citar este post [ISO 690/2010]:
Um rural sob medida?. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. [viewed 18 July 2014]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/um-rural-sob-medida/