‘A Copa é o melhor momento de expressar o inconformismo com as nossas insatisfações’

Junho/2014

Equipe do blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos
Afonsinho. Foto de Luís Peazê.

Afonsinho em Paquetá.
Foto: arquivo pessoal de Luís Peazê (clique para mais)

O privilégio de sediar uma Copa não está sendo devidamente aproveitado pelo Brasil  e cabe ao povo se manifestar, participando politicamente e crescendo com isso. É o que pensa o jogador e médico Afonsinho, craque que conquistou seu passe livre em plena ditadura militar. Entre 1966 e 1968, Afonsinho ajudou o Botafogo a ganhar seis títulos – inclusive o da Taça Brasil. Em 1970, por insistir em manter barba e cabelos compridos – símbolos de rebeldia em tempos de repressão – o jogador ficou oito meses com o contrato suspenso no clube. Quando quis sair, os cartolas não liberaram o seu passe. Ele recorreu ao Superior Tribunal de Justiça Desportiva e ganhou o passe livre em março de 1971 – o primeiro no Brasil. O direito só seria instituído por lei a todos os jogadores 27 anos depois, em 1998. Além do Botafogo, Afonsinho jogou pelo Olaria, Flamengo, Santos, Vasco, América-MG e Fluminense. Em paralelo ao futebol, estudou medicina e participou do movimento estudantil. Politizado e combativo, esteve na mira dos órgãos de segurança da ditadura. Como médico fisiatra, buscou aproximar o esporte e as causas sociais à sua prática, como no trabalho no Instituto Pinel, onde aplicava esporte na recuperação de doentes mentais. Foi treinador de vários times, inclusive do time da Associação dos Servidores da Fundação Oswaldo Cruz, instituição pela qual demonstra imenso carinho. Afonsinho – ou Afonso Celso Garcia Reis – vive na ilha de Paquetá, onde trabalha como médico do Programa Saúde da Família. Continua jogando com o Trem da Alegria – time que fundou com amigos ilustres em 1975 – e bom de conversa, como provou ao blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Que proveitos a Copa poderia nos trazer ou trará? O Brasil está aproveitando a oportunidade? Uma Copa no Brasil deve ser, em princípio, uma das melhores coisas que pode acontecer para o povo brasileiro, talvez a festa mais desejável possível. As implicações decorrentes dos vários interesses, políticos principalmente, sempre acontecem. O Brasil já sediou uma Copa e havia controvérsias também. Penso que este mundial vem num momento de auge dessa perversidade que é a “ideia” neoliberal, vergonhosa na história do homem. Atravessamos esse período com todas suas decorrências. Claro que não estamos aproveitando essa oportunidade extraordinária, tudo rigorosamente a cara do Brasil de hoje. O melhor que pode acontecer é aproveitarmos tudo isso para crescer. A lição é muito clara: os benefícios das oportunidades devem ser defendidos pelos seus interessados, nós, o povo brasileiro. Devemos estimular a participação política cada vez maior da população sob pena de nos vermos envolvidos em episódios de violência que o desespero acarreta. O que você tem achado das manifestações contra a realização da Copa no Brasil?  O melhor momento de expressar o inconformismo com as nossas insatisfações. Copa e manifestação. Qual sua opinião sobre o episódio de racismo com o Daniel Alves? Trouxe à tona a necessidade de sermos consequentes no combate a essa e outras formas de intolerância. Não fazer o jogo de quem a promove, ao contrário, esvaziá-la da promoção que ela procura e a partir daí tomar as iniciativas mais inteligentes possíveis, como, por exemplo, valorizar as manifestações saudáveis da integração. Durante algum tempo você treinou um time de futebol na Fiocruz. Qual sua relação com a instituição e como foi essa experiência?   A Fiocruz é o Brasil em autoestima, como o Brasil deve ser. Vários amigos trabalham na instituição. A Asfoc (Associação dos Servidores) sempre apoiou nosso trabalho com a função social do esporte. Um grande e forte abraço a todos da gloriosa Fiocruz. Gostaríamos que falasse um pouco da relação entre saúde e futebol e da sua experiência no Instituto de Psiquiatria da UFRJ (Ipub) e no Pinel, quando você convocava pacientes e internos para jogar futebol no campo da Escola de Educação Física que ficava no terreno ao lado. Saúde e esporte, no nosso caso o futebol, são imantados em todos os campos. O trabalho na área de saude mental foi um chamado do pessoal da luta antimanicomial, por iniciativa do querido amigo Dr. Onildo e capitaneado pela Gina Ferreira e sua turma sensacional. Acabei ficando por lá quase dez anos, uma empreitada  enriquecedora que me entusiasma pelo que pode vir a ser com o passar do tempo. Até hoje fico ligado de uma maneira ou de outra àquela iniciativa. Para terminar, qual o seu palpite para a final da Copa? Palpite só de brincadeira. “Futebol não tem lógica”, diz o dito popular. Itália e Argentina, se é que isso é possível. Futebol mesmo, no momento, ainda é o espanhol. Não perca: Em 1974, Afonsinho foi personagem do longa-metragem ‘Passe Livre’, documentário de Oswaldo Caldeira De Gilberto Gil, mereceu a canção Meio de campo (1973), que ganhou interpretação de Elis Regina E do também médico e jogador Sócrates herdou o posto de colunista da revista Carta Capital Leia também: A prática do futebol na medicina – Artigo de Wilson de Carvalho na revista A Nova Democracia (2003) sobre o trabalho do Dr. Afonsinho no Pinel Leia no blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos: ‘Uma Copa não tem a força necessária para mudar um país’ Para o antropólogo alemão Martin Curi, os brasileiros alimentaram esperança demais, e o legado possível restringe-se à venda de uma imagem positiva do Brasil ‘O x da questão não está na reação do jogador, mas no teor da campanha’ Para Clícea Maria Miranda, associação do negro com animalização e a irracionalidade está cristalizada. Macacos não jogam futebol Ricardo Waizbort inocenta Darwin de acusações de racismo e explica que ele defendia que todas as “raças” humanas faziam parte de uma mesma espécie e compartilhavam um ancestral comum: um primata. Arquivo Nacional em ritmo de Copa Exposição virtual Drama e Euforia: o Brasil nas Copas de 50 a 70 traz fotos do Correio da Manhã e da Agência Nacional Leia na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos: Formação de relações regionais em um contexto global: a rivalidade futebolística entre Rio de Janeiro e São Paulo durante a Primeira República – Artigo de Christina  Peters (vol. 21, n.1,  jan.-mar. 2014) Leia mais: Qual será o legado deixado pela Copa? – O preço que se paga por sediar o megaevento foi tema da reportagem de capa da Revista Radis de junho.  Legado também é tema do Blog Saúde em Pauta. O contraditório silêncio verde e amarelo – Artigo de Fábio Vasconcellos publicado na página de opinião do Globo em 3 de junho de 2014. Como citar este post [ISO 690/2010]: ‘A Copa é o melhor momento de expressar o inconformismo com as nossas insatisfações’. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. [viewed 9 June 2014]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/a-copa-e-o-melhor-momento-de-expressar-o-inconformismo-com-as-nossas-insatisfacoes/