Judeus que resistiram à ditadura eram secularizados

Maio/2014

Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos

Fotos de Roberto Jesus Oscar | COC/Fiocruz

Comerciantes ou intelectuais? “De direita” ou “de esquerda”? O que são os judeus afinal? Esta tensão identitária foi o mote das discussões da parte da tarde do seminário “Judeus, militância e resistência à ditadura militar”, realizado em 21 de maio de 2014 no Instituto de História da UFRJ, no Centro do Rio, e promovido conjuntamente pelo Núcleo Interdisciplinar de Estudos Judaicos do Programa de Pós-graduação em História Social da UFRJ e o Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.

Na mesa-redonda “Os caminhos da resistência democrática”, coordenada por Nísia Trindade Lima (COC/Fiocruz), o sociólogo Bernardo Sorj, diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, esclareceu que os judeus que participaram da resistência à ditadura militar eram judeus secularizados, isto é, que não seguem rigidamente a religião e se integram à cultura da sociedade em que vivem. Para ele, o excesso de ênfase no fator judaico pode levar ao esquecimento de que se trata de um setor da comunidade, e não dela como um todo.

Bernardo Sorj, à direita, ao lado de Alberto Dines, Nisia Trindade Lima e Roberto Grün

De acordo com Sorj, dificilmente encontram-se judeus ortodoxos e sefaradim (oriundos da Espanha, norte da África e Oriente Médio) na resistência a ditaduras, e, no Brasil, não foi diferente: “Houve a contribuição de brasileiros judeus, ou judeus brasileiros, judeus que querem ser brasileiros”. Ele destacou a influência de movimentos juvenis socialistas- sionistas internacionais com atuação no Brasil, como Dror e HaShomer Hatzair.

O jornalista Alberto Dines contou que a comunidade judaica era claramente dividida entre os “roite idn” (judeu vermelho, em ídish) e os não “roite”. Segundo ele, a vida judaica de esquerda no Brasil era muito intensa e corria separada da vertente sionista.

Em sua apresentação intitulada “O shteitl (aldeia) perplexo”, Dines lembrou que os judeus viviam sob o fantasma do fascismo, do nazismo e do integralismo de Plínio Salgado. Ele traçou um paralelo entre as perseguições sofridas pelos jornalistas Samuel Wainer e Vladimir Herzog, que teriam como ponto comum um sentimento anti-judaico, apesar das épocas e contextos distintos. “Havia um olho anti-judaico na repressão”, disse.

O jornalista trouxe uma lista de judeus “desaparecidos” na ditadura: Ana Rosa Kucinski Silva e seu marido Wilson Silva (que não era judeu), Mauricio e André Grabois (pai e filho), Chael Schreier, Gelson Reicher, Pauline Philipe Reischtuhl, Vladimir Herzog e Yara Iavelberg. Dines citou ainda como “quase desaparecidos” Alfredo Sirkis e Carlos Minc: Sirkis participou do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick, em 1969, que levou à libertação de 40 guerrilheiros presos pela ditadura, entre eles, Minc. Dines recomendou o livro K, de Bernardo Kucinski, sobre a busca de seu pai pela irmã desaparecida (Ana Rosa).

O professor Roberto Grün, do Núcleo de Estudos em Sociologia Econômica e das Finanças da Universidade Federal de São Carlos, falou sobre sua pesquisa acerca dos políticos judeus de São Paulo e do comportamento eleitoral dos judeus paulistas, levando em conta a “dupla identidade” judaica no Brasil – seria um povo de intelectuais ou povo de comerciantes? – e os consequentes constrangimentos dessa tensão no âmbito político.

Respostas e silêncios étnicos

Na mesa-redonda “Etnicidade judaica e estratégias de luta contra a ditadura militar”, coordenada por Bila Sorj (UFRJ), o historiador e escritor Roney Cytrynowicz, pesquisador do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro, explicou que a comparação entre os períodos do governo de Getúlio Vargas e do Estado-Novo e os anos da ditadura de 1964 permitem uma reflexão interessante para a história contemporânea dos judeus no Brasil, tanto do ponto de vista da ideologia do Estado e de suas ações em um período ditatorial quanto em relação à organização da comunidade judaica e às “respostas étnicas” dadas pelas instituições.

Jovens prestigiaram o seminário na UFRJ

Segundo Cytrynowicz, no período Vargas, as questões relacionadas à imigração, etnicidade e povoamento eram temas centrais associados à discussão da organização do Estado e de suas políticas, e em muitos casos ao anticomunismo oficial. Nos anos 30 houve uma “questão judaica” importante na política, mas na ditadura de 1964 a questão étnica não era central nas questões do Estado. De acordo com o historiador, os episódios em que o anti-semitismo esteve presente, como, por exemplo, nos desdobramentos do assassinato de Vladimir Herzog, foram pontuais, e a comunidade não esteve envolvida, como nos anos 1930.

“Uma das tarefas difíceis em relação a esta comparação e aos dois períodos é balancear a dimensão da questão judaica: nem olhar os judeus apenas como vítimas em relação ao período Vargas – época na qual, de resto, a comunidade viveu um período extremamente frutífero -, e, de outro lado, não superdimensionar um ativismo da comunidade no período da ditadura em prol da redemocratização”, explicou.

Entre os espaços judaicos em São Paulo que podem ser considerados importantes na resistência à ditadura militar estão o Instituto Cultural Israelita Brasileiro, conhecido como Casa do Povo, a escola Scholem Aleichem, e os movimento juvenis sionistas de esquerda, nos quais havia uma educação e formação política.

‘Judeu’ e ‘comunidade’: termos inadequados

Jeffrey Lesser, professor de História da Universidade de Emory, nos EUA, que pesquisa judeus e outros imigrantes no Brasil, criticou o uso da categoria “judeu” e do termo “comunidade” por historiadores. “Não funciona bem, e se não pode tirar o brasileiro da história”, disse.

Segundo Lesser, os supostos líderes da comunidade são autodefinidos ou definidos por grupos pequenos, e a maioria das pessoas que se definem como judeus não são membros de instituições judaicas. Ele explicou que para se entender o lugar de judeus-brasileiros em qualquer momento politico é preciso lembrar que não se pode tratar brasileiros como estrangeiros e nem começar as pesquisas com a assunção de que judeus são diferentes. Para ele, só através de comparações com outros grupos étnicos é que se poderá entender judeus-brasileiros ou qualquer outro grupo de brasileiros.

Judeus comunistas

Da esquerda para a direita, Roney Cytrynowicz, Bila Sorj, Marcos Chor Maio e Jeffrey Lesser

Marcos Chor Maio, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, discorreu sobre as relações entre antissemitismo e anticomunismo no discurso da ditadura militar por ocasião da perseguição ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), especialmente no ano de 1975, quando o governo do general Ernesto Geisel intensificou a perseguição aos comunistas. De acordo com o professor, o processo de desmantelamento do PCB aconteceu no momento em que os setores de ultradireita buscavam inviabilizar a controlada abertura política e após a esmagadora vitória do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), o partido da oposição ao regime, nas eleições de novembro de 1974.

O Dops divulgara que um “setor judaico” dava sustentação financeira ao PCB em São Paulo. Este setor, superdimensionado pela ditadura, era acusado de ter apoiado a expressiva reeleição de Alberto Goldman a deputado estadual pelo MDB, trazendo mais uma evidência, aos olhos do governo Geisel, da alegada importância dos judeus comunistas na luta contra o regime autoritário.

Para Chor Maio, a trajetória dos judeus comunistas no Brasil tem mais perguntas que respostas. “É uma história plena de reiterações, circularidades e estereótipos, e cheia de fascinantes desafios”, concluiu.

Leia mais:

Resistência de judeus à ditadura é tema de debate – Cobertura da parte da manhã do mesmo seminário.

Leia em História, Ciências, Saúde – Manguinhos:

Um Brasil melhor – Artigo de Jeffrey Lesser na última edição da revista (vol.21 n.1 jan./mar. 2014)

Como citar este post [ISO 690/2010]:
Judeus que resistiram à ditadura eram secularizados. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. [viewed 29 May 2014]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/judeus-que-resistiram-a-ditadura-eram-secularizados/