Marina Lemle e Jaime Benchimol | Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos
O golpe que completa 50 anos teve raízes muito anteriores a 1964 e resultou de uma conspiração de entidades que reuniam empresários e militares interessados numa modernização conservadora do capitalismo brasileiro, patrocinada pelo imperialismo estadunidense. Esta é a visão do professor de História da UFRJ Renato Lemos, coordenador do Laboratório de Estudos sobre os Militares na Política e membro do Conselho Editorial de História, Ciências, Saúde-Manguinhos. Ele deu entrevista ao blog da revista.
Como avalia o estado da arte no campo historiográfico e sociológico sobre o golpe de 64?
É um campo marcado fortemente pelo memorialismo, reconstruções emocionalmente motivadas e narrativas voltadas para a reabilitação de personagens derrotadas em 1964. As melhores análises já são meio antigas, destacadamente a obra seminal, e ainda insuperada, do cientista político uruguaio-brasileiro René Armand Dreifuss – 1964. A conquista do Estado. Os estudos sobre o golpe de 64 não têm se avolumado tanto como aqueles voltados para aspectos do regime político a que ele deu ensejo. Nos últimos cinco anos, mais ou menos, os cursos de história e ciências sociais têm assistido ao crescimento vertiginoso do número de pesquisas, em diversos níveis, sobre assuntos como violência, censura, espionagem, anistia. O foco dos estudos costuma estar voltado para aspectos que poderíamos chamar de “espetaculares”, por mobilizarem emoções – legítimas, diga-se – em retrospectiva. A preponderância da perspectiva liberal, principalmente pela forte presença do campo dos direitos humanos no assunto, tende a estimular estudos que subsidiem a formulação de políticas de “justiça de transição”, privilegiando os dramas individuais de quem foi atingido pela face repressiva do regime pós-64.
Quais as principais tendências? Há controvérsias interpretativas?
Não se pode considerar uma tendência a perspectiva que defende abertamente o golpe de 1964, porque ela envolve, fundamentalmente, militares da reserva e um ou outro “pensador” de direita sem muito crédito no campo intelectual.
Entre as visões críticas do golpe, há, basicamente, duas vertentes. Uma procede a um revisionismo das explicações do golpe construídas em torno de matrizes esquerdistas, que valorizam a luta de classes e apontam o caráter empresarial do golpe como seu aspecto historicamente mais importante. Essa vertente revisionista tenta distribuir igualmente, entre golpistas e golpeados, a responsabilidade histórica pelo golpe, acusando as “esquerdas” da época de terem estimulado o golpe ao não se preocuparem com o efeito que a sua ação “radical” pró-reformas poderia ter sobre a democracia. Acentua o caráter civil-militar do golpe, mas não considera importante matizar o campo civil, designação que, por si só, diz muito pouco, apenas aponta a existência de não militares junto aos militares.
A outra vertente, crítica desse revisionismo e com a qual me identifico, sustenta que é preciso considerar que o golpe teve um conteúdo empresarial-militar, isto é, foi dado por uma coalizão dirigida por entidades que reuniam empresários e militares em torno de um programa antinacionalista, anticomunista e em favor de uma modernização conservadora do capitalismo brasileiro, sob o patrocínio do imperialismo estadunidense. Outro ponto forte dessa vertente é a ênfase na abordagem do golpe como um fenômeno cujas raízes são muito anteriores a 1964 e que foi vitorioso graças a uma conspiração muito bem urdida por entidades da sociedade civil e financiada por capitais nacionais e internacionais.
O que ainda falta fazer?
O que, do meu ponto de vista, ainda não vem sendo feito a contento são estudos de conjunto do regime ditatorial: suas bases materiais, seus componentes ideológicos e sua dinâmica política de um ponto de vista integrador de suas etapas. A compreensão do golpe precisa ser obtida a partir da análise do regime ditatorial e a deste, a partir da atualidade. Os problemas que a sociedade brasileira vive hoje constituem, em muitos aspectos, desdobramentos de opções feitas durante a ditadura. Mas, não devem ser analisadas como um “entulho autoritário” de que a sociedade brasileira não consegue, não quer ou se esquece de eliminar. Nem como um “legado” com que tenha de conviver. Trata-se de “funcionalidades”, de instituições, leis, valores associados à “razão de Estado” e, portanto, blindados contra toda crítica. Pensemos na ação do Banco Central, na prioridade que se confere aos interesses das grandes corporações econômico-financeiras, na legislação repressiva etc. Criadas pela ditadura, foram preservadas pelo pacto tácito da transição, porque os setores dirigentes da mudança política foram, basicamente, os mesmos dominantes durante a ditadura. Como uma novidade importante – a passagem do Partido dos Trabalhadores para esse campo -, são os que nos dirigem desde o fim da ditadura, em 1988.
A historiografia sobre o golpe interage com a de outros países que tiveram ditaduras contemporâneas? Há semelhanças?
Sim. Eu mesmo organizei, em fins de 2012, na UFRJ, um colóquio internacional que discutiu os regimes ditatoriais e os processos de transição no Cone Sul da América, no Sul da Europa, no Leste Europeu e na África do Sul. Outros eventos, de natureza mais restrita, têm se realizado no Brasil e países da América do Sul para examinar semelhanças e diferenças entre os processos políticos nacionais. Todas as ditaduras, com exceção das comunistas, têm em comum o elemento de ligação com os países imperialistas, com os EUA em particular. Mas pode-se dizer que há blocos de experiências ditatoriais, delimitados por singularidades históricas. Assim, o salazarismo e o franquismo, em Portugal e Espanha, respectivamente, se explicam por aspectos da história europeia na primeira metade do século XX. As ditaduras latino-americanas se ligam a uma conjuntura específica de crise da ordem política típica de países periféricos e dependentes, forjada a partir do impacto da crise de 1929 na área. Basicamente, a crise do populismo, conjugada com os efeitos da Guerra Fria no continente. A ditadura grega também está conectada com a estrutura política europeia do pós-segunda guerra, que desencadeou no país um conflito que resultaria na “ditadura dos coronéis”. A experiência da África do Sul é ainda mais particular, porque tem a ver com a descolonização e a estrutura do racismo de Estado. Já as ditaduras do Leste Europeu têm a ver com a política estalinista consagrada após a Segunda Guerra, assim como a sua crise é a crise desta política ao final dos anos 1980. Entretanto, os processos de transição política aconteceram em todos esses países em um período que se pode considerar curto, entre meados da década de 1970 e fins da década de 1980. Suas dinâmicas foram diversificadas, mas houve vários cruzamentos e influências recíprocas, entre países de um mesmo “bloco” de ditaduras e entre “blocos” diferentes.
Saiba mais:
Site do Laboratório de Estudos sobre os Militares na Política
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Como citar este post [ISO 690/2010]:
Empresários e militares conspiraram para o golpe de 64. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. [viewed 31 March 2014]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/empresarios-e-militares-conspiraram-para-o-golpe-de-64/