Março/2014
Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos
“A 28 de dezembro de 1879 quatro mil pessoas lideradas pelo tribuno republicano Lopes Trovão se juntaram no campo de São Cristóvão para se manifestar contrariamente à entrada em vigor de um imposto de vinte réis (um vintém) para os passageiros de bonde do Rio de Janeiro. O imposto havia sido idealizado pelo ministro da Fazenda do gabinete liberal do visconde de Sinimbu, Afonso Celso de Assis e Figueiredo. Em seguida, a multidão dirigiu-se, pacificamente ao Paço Imperial da Quinta da Boa Vista, na intenção de endereçar ao imperador dom Pedro II uma petição contrária ao tributo. O monarca não os recebeu. No dia da entrada em vigor do imposto, 1º de janeiro de 1880, eclodiu uma insurreição que escapou completamente ao controle de seus líderes. Durante três dias, a multidão enfurecida obstruiu e arrancou trilhos de bondes; desatrelou burros; quebrou carros e arrancou paralelepípedos do pavimento para organizar barricadas. Durante os distúrbios, um coronel foi atingido com uma pedrada na cabeça, e a tropa, abrindo fogo, matou três manifestantes e deixou 28 feridos (Holanda, 1985, p.234). Pacificada a cidade, o imposto foi revogado.”
A história se repete? Ou qualquer semelhança é mera coincidência? Como mostra o trecho acima, é impossível ler o artigo “A multidão é louca, a multidão é mulher” : a demofobia oligárquico-federativa da Primeira República e o tema da mudança da capital, de Christian Edward Cyril Lynch, sem levantar estes questionamentos.
Publicado na última edição de 2013 de História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v. 20 n. 4, out./dez. 2013), o artigo discute como a literatura demófoba produzida pelos liberais europeus contrários à democratização em seus países impregnou a orientação da classe política brasileira do período da Primeira República em face às manifestações do povo carioca. O autor também relaciona o temor dos políticos das multidões ao desejo de mudança da sede do governo federal para o interior, onde a população seria mais ordeira.
Para discutir esta aparente demofobia histórica, entrevistamos Lynch, que é professor do Programa de Pós-graduação em Ciência Política do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
“Os políticos tem sim medo da população, o que se traduz em diversas iniciativas relativas à construção de novas sedes de poder. As recentes iniciativas, por exemplo, no Rio de Janeiro, de remover a sede da Câmara Municipal e da Assembleia Legislativa para a Cidade Nova estão relacionadas à demofobia, embora não exclusivamente. O pretexto é obter mais espaço, mas tais órgãos poderiam perfeitamente obter mais espaço nas redondezas de suas atuais sedes, não havendo qualquer necessidade de se retirá-los de onde se encontram”, afirma.
Para ele, a Câmara Municipal poderia alugar andares, adquiri-los ou mesmo desapropriar um edifício inteiro da Cinelândia para servir-lhe de anexo. “O fato de se acharem em palácios icônicos, que constituem representações do poder não apenas em nível local, mas nacional, em praças públicas centrais da história política do Brasil, como a Cinelândia e a Praça 15, não servem de obstáculos aos políticos. É claro que eles querem mais espaço, para terem mais luxo, gabinetes maiores, mais assessores, elevadores e entradas privativas, garagens para mais e melhores carros oficiais. Mas as novas sedes ficariam em locais mais longe e menos centralizados, e os prédios seriam dotados de equipamentos destinados a lhes garantir mais segurança nas entradas e saídas, dificultando a invasão”, argumenta.
Por outro lado, o professor afirma que a demofobia da classe política se modificou num sentido crucial: antes, os políticos não se importavam de manifestar a sua demofobia, porque essa manifestação não lhe renderia qualquer prejuízo. Hoje a situação é completamente diferente: os políticos se dizem favoráveis às manifestações para agradar a opinião pública. “Mas estou longe de negar que a demofobia tenha desaparecido”, esclarece.
Lynch explica que durante a Primeira República o regime não era democrático, mas oligárquico. O povo não participava da vida política: as eleições envolviam 2% da população, percentual este controlada por uma elite de homens abastados, alfabetizados, brancos e adultos. O grosso do povo – pobres, mulheres, negros – não contava para a classe política, que se confundia com a elite social e política da época, conservadora, de grandes comerciantes, profissionais liberais e proprietários de terras. Com a democratização da vida pública, passaram a votar cerca de metade da população.
Ele acrescenta que o perfil da classe política também sofreu uma grande transformação, sendo mais representativa do perfil social do povo. “Ela continua a temer o povo, mas de uma outra forma. Não o despreza socialmente como negro ou pobre, mas teme a sua reação como eleitor, ou seja, perder o seu voto. As reações às manifestações de junho são exemplares dessa atitude. Ao contrário do que aconteceu na Revolta da Vacina, a maioria esmagadora dos políticos fez profissão de fé favorável às manifestações, para agradar a opinião pública a elas vinculada. É uma outra maneira de temer o povo”, afirma.
Capital sem povo
Lynch não tem dúvidas de que a mudança da capital para Brasília tenha surtido o efeito esperado. “A vigência do regime militar ficou muito facilitada pelo insulamento de Brasília, que não passava de um condomínio de funcionários públicos em torno de um centro administrativo. E, convenhamos, o funcionário público não é o perfil típico do povo que protesta e faz manifestação cívica, porque é parte do Estado. Suas reivindicações tendem a ter cunho corporativo”, provoca.
Segundo o professor, no Rio de Janeiro havia uma simbiose entre a capital simbólica e a capital nacional, fazendo o povo carioca as vezes de representante visível do povo brasileiro. “Foi essa representação que foi recusada e quebrada por pressão das oligarquias. Hoje, a embora a capital simbólica do Brasil continue a ser o Rio de Janeiro, a imagem do povo carioca foi, do ponto de vista político, reduzido àquele da capital de um grande Estado como outro qualquer”, atesta.
Para Lynch, até hoje não existe um povo “brasiliense” que tenha substituído o povo carioca na função de representar o povo de todo o país. Além disso, as pessoas moram muito longe do centro do poder. “Surpreende ainda hoje circular pela Praça dos Três Poderes, que contêm tantas referências ao povo brasileiro em seus monumentos, e vê-los todos vazios, sem qualquer sinal deste povo tão invocado na aparência. O grande ausente na espetacular representação simbólica de Brasília é o povo. Vá visitar o tal Memorial Tancredo Neves. Não há vivalma. Invoca-se o nome de uma nação que não se vê no Plano Piloto”, critica. Ele acrescenta que esta é uma imagem de Brasília que não tem como ser revertida, porque foi construída para ser exatamente assim, e o tombamento do Plano Piloto não permite qualquer alteração futura.
“Por isso mesmo permanece no imaginário brasileiro a ideia de que Brasília é um centro administrativo insulado da nação, espécie de Corte republicana instalada no meio de Goiás, Versalhes burocrática, rodeada apenas pelo funcionalismo, ausente de povo”, conclui.
Leia em História, Ciências, Saúde – Manguinhos:
“A multidão é louca, a multidão é mulher” : a demofobia oligárquico-federativa da Primeira República e o tema da mudança da capital – artigo de Christian Edward Cyril Lynch (v. 20 n. 4, out./dez. 2013)
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Como citar este post [ISO 690/2010]:
Os ‘vândalos’ de outrora. Blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos. [viewed 14 March 2014]. Available from: http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/os-vandalos-de-outrora/