Outubro/2013
Marina Lemle
“Açaí Samurai” é o nome inusitado da equipe de caiaque de uma escola do Havaí. Os jovens inspiraram-se nos poderes energéticos da fruta que consomem diariamente em sucos, sorvetes e outras receitas. Aqui no Brasil, um nome justo seria Açaí Caboclo, para homenagear quem melhor conhece a força da fruta nativa do Pará.
E como o açaí foi parar do outro lado do mundo, no meio de um oceano que nem banha o nosso litoral? A resposta reúne palavras-chave tão diversas como índios, jiu-jitsu, surfe, Rede Globo e Oprah Winfrey, e o elo entre elas está na rota Belém – Rio de Janeiro – Havaí – Califórnia.
Para registrar como uma das principais fontes de alimento das populações ribeirinhas do Pará ultrapassou fronteiras culturais e se tornou um alimento valorizado no mercado internacional, com produtos que vão de chás e chocolates a energéticos e até cosméticos, a pesquisadora Ivone Manzali de Sá (foto), do Laboratório de Etnobotânica do Museu Nacional da UFRJ, seguiu os caminhos percorridos pela fruta, numa pesquisa feita em parceria com a Universidade do Havaí em 2011 e 2012.
Ivone apresentou os resultados do estudo na palestra “Açaí Samurai: a globalização de alimentos tradicionais”, realizada em 26 de setembro na Coleção de Plantas Medicinais do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Ela contou ao público o mito do açaí – “a fruta que chora”:
Como a tribo passava fome, o cacique mandou matar todos os recém-nascidos, incluindo seu neto, filho da filha Aiçá. Desesperada, a moça passou a noite chorando embaixo de uma palmeira, e no dia seguinte foi encontrada morta, olhando para os açaís. O cacique então teve um insight: aquelas frutas solucionariam a fome na aldeia. Dito e feito. Graças ao ya-çaí, como é chamada a fruta em tupi, nenhum indiozinho foi morto.
O consumo entre índios continua forte, mas não se compara ao dos caboclos no Pará. Segundo Ivone, a fruta chega a representar 50% da fonte alimentar dos caboclos, principalmente na Ilha de Marajó. A polpa é consumida pura, em temperatura ambiente, acompanhando comidas salgadas. É a única fruta considerada um alimento “reimoso”, isto é, que dá energia e sustança para o trabalho. Cada 100 gramas tem 247 calorias, podendo substituir uma refeição. Por causa da cor escura, muitos acreditam, equivocadamente, que o açaí seja rico em ferro e o utilizam para combater a anemia.
Jiu-jitsu, surfe e Malhação
Apesar de não ser uma boa fonte de ferro, o açaí fornece tanta energia que realmente ajuda pessoas enfraquecidas a terem mais força. Como boa paraense, a família Gracie, de lutadores de jiu-jitsu, sabia disso e alimentava o franzino Carlos Gracie com tijelas de açaí batido com guaraná natural antes dos treinos e das lutas. No Rio, a fórmula dos Gracie foi disseminada por um irmão de Carlos em outra tribo: a dos surfistas.
O açaí com guaraná combinava com o estilo de vida dos anos 1980 e 1990 e, na onda do surfe, foi parar na Califórnia e no Havaí. No Brasil, a difusão em larga escala começou com a novela Malhação, da Rede Globo, que mostrava a “geração saúde” tomando açaí na academia. Para se ter ideia do crescimento do mercado, em 1992, o Pará exportou cinco toneladas de polpa de açaí; em 1996, foram 180 toneladas. Este aumento de produção da polpa para fins comerciais com qualidade foi possível graças ao trabalho da Embrapa voltado para as frutas do Norte.
“Se no meio rural o açaí fornece sustança para o trabalho, no urbano ele dá energia para o esporte e o lazer. Essa mudança de padrão de consumo do açaí gerou uma mudança de status da fruta e levou à sua assimilação por outras culturas, como a cultura norte-americana”, afirma Ivone.
O boom do açaí
Com um empurrãozinho da apresentadora de televisão norte-americana Oprah Winfrey, o açaí conquistou o mundo. Em 2005, seu dermatologista, Dr. Perricone, colocou o açaí no topo da lista das frutas, pelo seu poder anti-oxidante e por promover a saúde cardiovascular, com gorduras comparáveis às do óleo de oliva. No ano seguinte ao programa da Oprah, o mercado do açaí aumentou 800%.
Um recurso que ajudou a promover a identificação cultural do açaí neste mercado foi o status de berry que ganhou. De acordo com Ivone, o termo ajuda a localizar o açaí no grupo de frutas conhecidas pelo público norte-americano como blueberry, strawberry, raspberry, entre outras, todas famosas por suas propriedades antioxidantes.
Ivone, que é doutora em História das Ciências da Sáude pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, levantou uma discussão sobre o mercado por trás da transição rural-urbana do açaí. Por quê, enquanto os americanos criaram e comercializam uma diversidade de produtos e marcas, o Brasil continua só vendendo matéria-prima? O que pode ser feito para que o Brasil se beneficie mais desse enorme mercado?
Fonte: Portal da RETiSFito
Fotos de Marina Lemle e Ivone Manzali de Sá
Leia em História, Ciências, Saúde – Manguinhos:
A resistência à cloroquina e a busca de antimalariais entre as décadas de 1960 e 1980 – artigo de Ivone Manzali publicado no Dossiê Malária (abr. /jun. 2011)
Em outras publicações:
A interdisciplinaridade na pesquisa de plantas medicinais de uso tradicional. Manzali de Sá, I. 2006, Revista de Ciências Agroveterinárias 5: 7-12.
Medical knowledge exchanges between Brazil and Portugal: an ethnopharmacological perspective. Journal of Ethnopharmacology, Volume 142, Issue 3, 1 August 2012.
“Fito-hormônios”: ciência e natureza no tratamento do climatério. SA, Ivone Manzali de, Physis, Rio de Janeiro , v. 22, n. 4, 2012