Setembro/2013
Na apresentação de Requiem por el Centauro, novo livro de Gustavo Caponi, chefe do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o leitor encontra uma chamada das mais desafiadoras:
“A biologia evolucionária do desenvolvimento – Evo-Devo – é mais do que um novo domínio de estudos. Em seu âmbito está sendo gestada uma nova teoria sobre os fenômenos evolutivos, com objetivos cognitivos próprios, complementar (mas não subalterna) à Teoria da Seleção Natural.”
Segundo Caponi, os estudos embriológicos mostram que na ontogenia podem se encontrar dados e chaves interpretativas de grande importância para a compreensão dos fenômenos evolutivos. A novidade, entretanto, não significa uma impugnação das conquistas mais relevantes da Nova Síntese – enquadramento teórico que definiu a configuração da biologia evolucionaria entre 1930 e 1990 e que deixou de fora da agenda evolucionista os estudos embriológicos. “Estamos diante de uma transformação que deve tomar a forma de um acordo e não de uma revolução que exija rendição ou resistência. A filosofia da biologia deve reconhecer esse fato e assumir suas conseqüências, evitando polêmicas estéreis, sem valor real para a explicação dos fenômenos evolutivos”, afirma.
O blog de História, Ciências, Saúde – Manguinhos enviou perguntas a Caponi para tentar entender melhor essa mudança de conceitos.
O que é biologia evolucionária do desenvolvimento ou Evo-Devo?
A biologia evolucionária do desenvolvimento é um capítulo relativamente novo da biologia evolucionária, que começou a se articular nos anos 1980, consolidando-se na década seguinte. Seu objetivo é entender como as exigências organizacionais da ontogenia (o desenvolvimento do organismo individual) pautam os caminhos da evolução e definem as sequências das mudanças evolutivas.
Você fala de nova teoria sobre os fenômenos evolutivos em desenvolvimento no âmbito da Evo-Devo, distinta mas não contraditória à da Teoria da Seleção Natural. Poderia explicar a nova teoria?
O ponto de partida dela é que o repertório das formas efetivamente geradas pela evolução é mais restrito do que o universo das formas biológicas funcionalmente viáveis. O objetivo da nova teoria é explicar por que isso é assim. Trata-se de um problema que a Teoria da Seleção Natural nunca se colocou; e, ao assumir este desafio, a Evo-Devo não contradiz a irmã mais velha. Ambas a teorias se complementam e geram uma nova Biologia Evolucionaria, mais ampla e poderosa. O modo como a Evo-Devo explica a restrição ou limitação na geração de formas tem a ver com as exigências organizacionais da ontogenia, que já mencionei: há morfologias que a evolução não pode gerar porque exigiriam reprogramações inviáveis da ontogenia. A evolução tem que marchar segundo as sequencias e trajetórias permitidas por essas exigências organizacionais. A Evo-Devo almeja conhecê-las e mostrar como as mudanças evolutivas se adequam a elas.
Qual a importância dessa teoria?
A importância da nova teoria está justamente no fato da alargar a agenda da biologia evolucionária. Agora há novas perguntas a serem formuladas e existe o referencial para que sejam respondidas. A Evo-Devo ampliou o cardápio de problemas solúveis que os evolucionistas podem encarar.
Qual é o seu objetivo com o livro?
Meu livro tem dois objetivos centrais. O primeiro é mostrar que na biologia evolucionaria atual está acontecendo uma grande mudança, mas não uma crise. Aliás, não gosto do tópico “a crise da biologia evolucionaria”. É um tópico anti-darwinista e, no final, sempre reacionário. O que ocorre é uma ampliação da biologia evolucionaria, com o surgimento de uma nova teoria que complementa e recontextualiza as grandes conquistas da nova síntese, sem as impugnar. O primeiro desafio do livro foi, por isso, delimitar essa teoria. Importante também foi mostrar que obedece ao mesmo esquema variacional da Teoria da Seleção Natural. A complementaridade entre as duas teorias tem muito a ver com isso.
Meu segundo objetivo foi fazer uma apresentação conceitualmente clara da Evo-Devo e das suas articulações com a Teoria da Seleção Natural, de maneira a facilitar a obtenção de conteúdos destinados ao ensino. Primeiramente no ensino superior; depois, quem sabe, no ensino médio. Meu livro não é, nem quer ser, um livro didático, uma introdução à Evo-Devo; mas pode ser útil para quem queira escrever essa introdução.
Quais as conquistas mais relevantes da Nova Síntese (e que não precisam ser impugnadas pela biologia evolucionaria)?
A maior conquista da síntese foi mostrar que a seleção natural é o único mecanismo responsável pelo ajuste das estruturas orgânicas às exigências da luta pela existência. Fatores como plasticidade fenotípica e a construção de nichos estão, é claro, envolvidos nessa adequação; porém, a própria plasticidade fenotípica e a capacidade que têm os organismos e as populações de modificarem funcionalmente o ambiente no qual medram são exemplos de adaptações. Quer dizer: estados de caracteres produzidos pela seleção natural. A seleção natural também é reconhecida como responsável pela adequação da estrutura e função interna dos seres vivos, mas aí, sim, algo escapa à Nova Síntese: aquilo que Lancelot Law Whyte chamou de ‘seleção interna’. Tento mostrar no livro que ela também é responsável pela integração funcional dos seres vivos.
Ao mesmo tempo, a seleção natural como mecanismo adaptador mostrou seu poder como mecanismo produtor de diversidade, por dizer assim o primeiro e mais fundamental desafio teórico da Teoria da Seleção Natural: explicar a diversificação de formas a partir de um ancestral primitivo comum. Outra grande conquista da Síntese foi mostrar a compatibilidade da Teoria da Seleção Natural com o caminho que tomou o estudo da hereditariedade depois de 1900. Primeiro, a genética mendeliana e a genética de populações: a vitoria inaugural da Nova Síntese consistiu em mostrar como devia se dar a articulação entre essas teorias e da Seleção Natural. Depois, foi a vez da genética molecular. Seus resultados, mostraram os teóricos da Nova Síntese, eram convergentes com os desenvolvimentos da teoria da seleção natural.
Mas as coisas não ficaram por aí. O desenvolvimento da biogeografia evolucionária, da sistemática filogenética, da ecologia evolucionaria e da etologia são desdobramentos da Nova Síntese, terrenos em que há ainda muito a explorar.
Como a Evo-Devo encara estas “descobertas” anteriores?
Eu geral como pontos pacíficos. A Evo-Devo quer alargar a pauta do debate e retomar discussões já ocorridas. Problemas importantes ficaram fora de discussão e merecem ser postos no centro da agenda da biologia evolucionária. Mas não há revisões globais de grande alcance a serem feitas. Os problemas novos têm a ver com os direcionamentos que as exigências organizacionais da ontogenia impõem à própria evolução. Insisto: trata-se de ampliar a catedral da biologia evolucionária, e não de demolir o que já foi construído.
E por via das dúvidas, sublinho: se alguém quer ver na Evo-Devo uma revisão do darwinismo, está percebendo mal as coisas. O darwinismo não está em crise, tampouco a Teoria da Seleção Natural. O que acontece com a biologia evolucionaria como um todo é que ela está ficando mais forte e maior. Este não é momento para os velhos profetas do anti-darwinismo.
Poderia dar exemplos objetivos de casos analisados sob as óticas da Nova Síntese e da Evo-Devo, para efeito de comparação?
Wallace Arthur, um dos teóricos mais importantes da Biologia Evolucionaria do Desenvolvimento, costuma dar um exemplo particularmente esclarecedor dos direcionamentos que a ontogenia pode impor à evolução. Trata-se de uma família de centopeias, Geophilomorpha, cujos segmentos portadores de extremidades locomotoras podem variar entre 27 e 191 nas distintas espécies do grupo (mais de um milhar). Certamente uma grande variedade. Mas o que surpreendente é que, malgrado essa variação na quantidade possível de segmentos, nenhuma espécie apresenta número par deles. Eis ai um fenômeno, de fato uma regularidade morfológica que não parece fácil de explicar por seleção natural. É difícil imaginar que, dadas as múltiplas condições ecológicas em que medram as diferentes Geophilomorpha, nenhuma população jamais tenha encontrado condições para passar de 27 para 28 segmentos, ou de 173 para 174, ou de 31 para 30. É difícil imaginar que nunca a transformação de um número ímpar para um par de segmentos possa ter permitido explorar oportunidades ou responder a ameaças colocadas pelo ambiente, de modo mais eficiente.
Evidentemente aconteceram muitas mudanças refidas por essas conveniências, mas sempre de um número ímpar para outro número ímpar de segmentos.
Parece casualidade demais. E quando são analisados os processos ontogenéticos envolvidos na constituição de segmentos em Geophilomorpha, a casualidade converte-se em causalidade. Por uma constrição genética, tais segmentos só podem aumentar ou diminuir por duplas. E como não se pode passar de 0 a 2, porque aí nada há para duplicar, pode-se passar de um a três, de 23 para 25, nunca 24.
Visto desde a perspectiva da Teoria da Seleção Natural, a quantidade de segmentos das centopeias é como um controle de volume ou de sintonia, que pode não encontrar um ponto ótimo de eficiência por não se mover num continuo, mas pulando, descontinuadamente.
Nós até poderíamos ter boas razões ecológicas para supor que, para determinada espécie de Geophilomorpha, seria bom perder um segmento. Poderíamos chegar à conclusão de que enfrentaria melhor os desafios e as oportunidades ecológicas com um segmento a menos, o que sempre implicaria importante economia de recursos. Mas, em virtude da constrição ontogênica a que me referi, essa espécie teria que perder pelo menos dois segmentos e isso poderia comprometer alguns desempenhos biológicos importantes para ela. Assim, vai permanecer com seu número atual embora não seja o ótimo em termos ecológicos.
A interdição do número par de segmentos em Geophilomorpha pode não parecer um grande enigma evolutivo. Mas, quiçá, o fato de não existirem vertebrados exápodos (6 pernas) como os insetos tenha a ver com esse tipo de restrições ontogenéticas. podem ser as responsáveis por não existirem centauros.
O que a Evo-Devo deverá mudar no aprendizado escolar sobre evolução?
Os docentes deverão aprender a operar num duplo registro, definido por dos eixos: conveniência ecológica e viabilidade ontogênica. A Teoria da Seleção Natural nos exige trabalhar com o primeiro eixo, e a Evo-Devo, com o segundo. O ensino da Teoria da Evolução terá de considerar os dois. É mais complicado mas mais interessante: o enigma do centauro pode ser motivador e levar os alunos mais longe do que o das mariposas inglesas.
Como os filósofos da biologia podem ajudar nesta mudança de paradigmas?
A rigor não dá para dizer que estejamos perante uma mudança de paradigma. O que está acontecendo não é uma revolução no sentido kuhniano, e sim uma ampliação da agenda interrogativa da biologia evolucionaria.
Isso não implica dizer que a mudança teórica em curso não seja importante. Os desenvolvimentos da Evo-Devo, tento mostrar no livro, pressupõem e concretizam uma nova teoria, que tem objetivos explicativos próprios, diferentes daqueles que persegue a Teoria da Seleção Natural.
Uma novidade teórica dessa magnitude não acontece sem gerar perplexidades e confusões no que tange à gramática fundamental da disciplina afetada. E digo que tais perplexidades e confusões são gramaticais porque têm a ver com as regras do discurso científico e não com o mundo sobre o qual fala esse discurso. Por isso, a superação das perplexidades e confusões é assunto da reflexão epistemológica. Deve ajudar os cientistas a superarem essas dificuldades gramaticais para assim poder se concentrar no estudo da própria complexidade do mundo.
Em encruzilhadas teóricas com essas, regras e conceitos fundamentais do dizer científico podem ficar opacos, ou podem exigir novos perfis difíceis de discernir. Toca à Filosofia da Ciência contribuir para reverter a opacidade e discernir melhor as regras e as bases do novo regime epistêmico que está sendo instituído pelo próprio devir da ciência.
Por que optou por disponibilizar seus livros na íntegra em PDF na internet e como tem sido o retorno?
A ideia de disponibilizar os livros na internet foi dos próprios editores. Fernando Zambrana, o responsável pela edições do Centro Lombardo Toledano me fez a proposta em 2011, quando foi lançada La segunda agenda darwiniana. O Centro Lombardo Toledano é um centro de pesquisa que, como muitas vezes acontece, não tem a logística necessária para a distribuição comercial das suas múltiplas edições. Há recursos para publicar; mas depois fica difícil fazer circular o material. Tivemos esse problema aqui no Brasil com as edições do Núcleo de Lógica e Epistemologia da UFSC. Para evitar isso, às edições impressas, que o Centro Lombardo Toledano tenta distribui por muitos meios, foram acrescentadas as edições em PDF, para que cheguem aos leitores mais distantes do México e de meus próprios espaços de atuação. Já tive oportunidade de constatar que o material circula muito assim. Uma atitude generosa e também muito lógica: as edições não foram feitas com intenção comercial, nem eu escrevi o livro com objetivos econômicos. As edições foram feitas com recursos que o centro recebe para divulgar determinadas linhas de pesquisa, e a edição eletrônica facilita essa circulação. Eu, de minha parte, pesquiso e escrevo porque isso é o que se espera que faça um professor universitário. E porque eu gosto, claro. Ademais, se quisesse ter retorno econômico não escreveria sobre filosofia da biologia: há assuntos mais rentáveis!
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