A ‘Boa Morte’ no Rio Colonial

Setembro/2013

Glauber Gonçalves | Blog História, Ciências, Saúde – Manguinhos

Detalhe de uma pintura de 1841 do francês Jules de Sinety mostrando o porto do Rio e o Mosteiro de São Bento sobre o morro homônimo (Wikipédia)

Para os beneditinos, a “boa morte” era aquela que ocorria entre os irmãos. Especialistas em ritos fúnebres, os membros dessa ordem viam nas doenças que os acometiam uma oportunidade para se preparar espiritualmente para a morte que se aproximava. Uma pesquisa desenvolvida por Jorge Victor de Araújo Souza – que resultou no artigo Especialistas em ‘bem morrer’: causa mortis, rituais e hierarquias em um mosteiro do Rio de Janeiro colonial, publicado na última edição de HCSM   mostra como a questão era abordada no Mosteiro de São Bento no século 18.

Em entrevista ao blog da revista, ele fala sobre o acesso às fontes utilizadas na pesquisa e sobre o papel que a Igreja Católica desempenha hoje nos rituais relacionados à morte. Para ele, diante do atual movimento de secularização da morte, a Igreja reivindica autoridade no discurso sobre temas como aborto, eutanásia e uso de células tronco. O pesquisador critica a corrente que rotula a igreja de “inimiga” histórica da ciência e do conhecimento – “reducionismo grosseiro”, na avaliação dele. “Dentro da própria Igreja e, sobretudo entre os fiéis, existem diversas vozes que não concordam inteiramente com diretrizes que interferem nas políticas públicas”, declarou.

– Como você vê o papel da Igreja Católica hoje nos rituais relacionados à morte e às doenças?

A Igreja sempre teve papel destacável nesse assunto, basta consultarmos o estudo clássico de Philippe ArièsO homem diante da Morte. Para o Brasil, as obras de João José Reis e de Claudia Rodrigues nos ensinam muito sobre a relação da Igreja com a morte e seus rituais, incluindo as irmandades religiosas, como a da Boa Morte. Alguns colegas também estão se dedicando ao estudo das ordens religiosas como detentoras e produtoras de conhecimento médico, como os jesuítas e suas conhecidas boticas. É claro que, como outras religiões, a Católica ainda possui atualmente significativa participação no que diz respeito aos rituais em torno da morte e seus desdobramentos. Entretanto, há forte movimento de secularização em curso. Isso explica, em parte, por que a Igreja luta pela autoridade no discurso sobre temas como aborto, eutanásia ou mesmo, o uso de células tronco para tratamentos. Controle dos corpos, controle das almas, diria Foucault. Mas não é tão simples assim, felizmente dentro da própria Igreja e, sobretudo entre os fiéis, existem diversas vozes que não concordam inteiramente com diretrizes que interferem nas políticas públicas. Por outro lado, observar a Igreja como “inimiga” histórica da ciência e do conhecimento em geral é de um reducionismo grosseiro, basta ler o livro de Pietro Redondi sobre Galileu ou, no caso do Brasil, os trabalhos de Heloisa Gesteira e de Carlos Ziller para perceber que a relação era tensa, como ainda é, mas existiam vínculos estreitos entre estas esferas, havendo inclusive “padres cientistas” atuando na colônia, por exemplo.

– O que o motivou a pesquisar o tema?

O tema do artigo está vinculado às pesquisas e reflexões que empreendo desde a graduação. Depois, fez parte da dissertação defendida no PPGHIS/UFRJ em 2007, e, de certa forma, aprofundei na tese que defendi na UFF em 2011. Minha preocupação estava focada nas vivências dos monges, no cotidiano, nos rituais, enfim, em seus espaços de sociabilidade. Portanto, a morte, um tema clássico da historiografia, me pareceu uma boa porta de entrada para essa investigação, ainda mais se considerarmos que os beneditinos sempre forjaram e mantiveram a imagem de especialistas no cuidado com os mortos.

– Para desenvolver esse trabalho, você consultou os dietários dos monges. Como foi o acesso a essas fontes?

É uma fonte riquíssima. O dietário do Rio de Janeiro pode ser encontrado em uma publicação rara de 1927 e, claro, no Arquivo do Mosteiro. O do Mosteiro da Bahia – que consultei no período da pesquisa – possui uma cópia na Biblioteca Nacional, mas hoje também já pode ser consultado on-line, pois foi publicado em 2009 pela EDUFBA, em uma ótima iniciativa de divulgação. Entretanto, a questão não se encerra ao acesso às fontes, pois se deve levar em conta a abordagem que se faz. Nesse sentido, usei o dietário de forma inédita, buscando nele a relação dos religiosos com a morte e com as questões de saúde. Mas não usei apenas estas fontes, pois cruzei informações com documentação de natureza bem variada. Durante as investigações da dissertação e da tese, passei muito tempo no Arquivo do Mosteiro do Rio de Janeiro, mas confesso que nem todos os documentos são de fácil acesso, o que é lamentável, por conta da riqueza do acervo e de sua importância para a história do Brasil. Mas devo destacar que a equipe do arquivo era muito competente e extremamente gentil, principalmente dona Francisca, conhecedora do acervo.

– Algum em especial lhe chamou atenção?

O que me chamou muito a atenção foi o Livro de assentamentos de batizados, casamentos e sepultamentos do Mosteiro de São Bento, entre 1765 e 1813. Como sabemos, estes registros são fundamentais para os estudos das relações sociais, como os que investigam redes de compadrio. Nessa documentação, estão anotados diversos nomes de escravos não só pertencentes aos beneditinos, mas a vários senhores da região do Rio de Janeiro. Outro documento curiosíssimo para quem se interessa pelo conhecimento dos monges é o Índice dos Cognomes e nomes de todos os Authores da Livraria, mandado fazer por D. Gaspar da Madre de Deus (1715-1800). Esse índice elenca mil e dezenove autores. A partir dele, foi possível traçar um perfil de uma comunidade de leitores no Rio de Janeiro colonial.

– No artigo, você explica que as doenças que acometiam os monges eram vistas como uma oportunidade de se preparar para a morte. Naquele período, os beneditinos se submetiam a tratamentos que buscassem a cura ou o prolongamento da vida, ou apenas buscava-se mitigar a dor e o sofrimento?

Dá para imaginar o que era uma simples dor de dente na época colonial? Imagine os gritos de sofrimento que ecoavam pelas ruas. Confesso que é preciso ter estômago para ler as terríveis descrições dos documentos. Como todos na sociedade, os religiosos buscavam principalmente se livrar da dor lançando mão de todos os recursos disponíveis, inclusive espirituais é claro. Mas se ela fosse inevitável, os monges criavam uma explicação que passava pela expiação do corpo, interpretando o sofrimento como um purgatório necessário, como indiquei no artigo. A questão é que os beneditinos possuíam conhecimentos para cuidar da saúde, como demonstrou a tese em botânica de Maria Franco Medeiros sobre a Botica monachorum. Assim como os jesuítas, os monges liam muito, produziam e reinventavam saberes, algo que faz parte da tradição monástica. Sobre a história social do conhecimento, área que está me despertando enorme interesse, há ainda muito que se pesquisar sobre as experiências coloniais em perspectiva comparada. Tratamentos de saúde e estratégias de sobrevivência me parecem ótimos temas para isso.

Texto em português | resumo em inglês

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