Agosto/2024
Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos
Os desafios da ciência aberta começam pelo entendimento do próprio conceito, bem mais amplo e complexo do que o acesso aberto já praticado por muitos periódicos científicos online, principalmente no Brasil e na América Latina. Isso ficou claro na quantidade de informações intercambiadas pelos participantes da mesa “Ciência aberta nas revistas científicas de humanidades”, realizada em 7 de agosto de 2024, no evento em comemoração aos 30 anos da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz.
O movimento de acesso aberto surgiu há mais de duas décadas como uma alternativa para reduzir os custos de publicação para autores, bibliotecas, leitores e instituições acadêmicas, “para democratizar o conhecimento e conceitualizar a pesquisa como um bem público, e não como uma mercadoria”, segundo o editor-científico do periódico aniversariante, Marcos Cueto. Segundo ele, sempre existiram tensões com o modelo comercial das grandes editoras do Norte Global, que cobram altos valores de assinatura às bibliotecas e aos leitores interessados em ter acesso aos artigos, além de “glorificar indicadores controversos, como o fator de impacto”.
Desde o início, com o impulso da Rede SciELO, o Brasil e outros países da América Latina adotaram a modalidade de publicação de periódicos online em acesso aberto, além de políticas públicas de financiamento de periódicos e de estímulo à criação de repositórios de dados. Porém, apesar de o acesso aberto ser predominante nas revistas, Cueto afirma que em áreas como as ciências humanas e sociais as práticas da ciência aberta ainda não foram assimiladas pela maioria dos autores.
“Um desafio que a ciência aberta tem agora é que nos últimos anos ela se transformou em um conceito ‘guarda-chuva’, onde diferentes atores têm diferentes formas de compreendê-la. A confusão mais comum é considerar o acesso aberto como sinônimo de ciência aberta”, atesta.
Além da gratuidade ao acesso de textos para autores, bibliotecas e leitores, a ciência aberta englobaria, segundo Cueto, a abertura dos dados de pesquisa, a publicação dos pareceres recebidos pelos artigos aprovados, a aceitação de artigos publicados previamente em servidores preprints, a utilização de repositório dos dados das pesquisas, a defesa de indicadores alternativos ao criticado fator de impacto, políticas institucionais e governamentais de apoio à ciência aberta e mais engajamento dos cientistas com a sociedade.
“Para alguns latino-americanos, é uma possibilidade de transformar a ciência em um processo, mais que um produto; um processo que não se limita a comunicar os principais resultados de pesquisa, mas socializa todas as etapas das investigações, como o planejamento, levantamento de dados, divulgação das publicações e impacto na mídia social”, explicou.
Plano S e APCs
Cueto destacou três momentos importantes na tentativa de uniformizar o conceito de ciência aberta nos periódicos que operam sob um modelo de assinatura: a Declaração Conjunta da Unesco e da Confederação de Repositórios de Acesso Aberto (Coar), que proclamou no ano 2016 que “o acesso aberto deve se tornar uma tendência global”; a decisão de 2018 de governos europeus, fundações como a Wellcome Trust, a OMS e, posteriormente, agências e fundações nos Estados Unidos, de adotar o Plano S, que anunciava que no futuro próximo pesquisas realizadas com fundos públicos tinham que ser de acesso aberto; e as três conferências mundiais de ciência aberta organizadas pela Unesco entre 2021 e 2023.
O editor de HCS-Manguinhos explicou que, segundo a versão original do Plano S, todas as revistas que publicam pesquisas feitas com fundos públicos têm que se converter em periódicos de acesso totalmente aberto. Vários sistemas foram propostos para se chegar a esse objetivo, assim como prazos de transição, muitas vezes estendidos, sendo o último vigente até o final de 2024, permitindo que revistas “híbridas” ofereçam opções parciais de acesso aberto. Com isso, muitas revistas acadêmicas de editoras comerciais reduziram significativamente o custo para bibliotecas e sistematizaram as taxas de processamento de artigos (Article Processing Charges, ou APCs), em que os autores subsidiam os gastos das revistas e contribuem com o lucro das editoras.
“As críticas mais comuns são que as taxas transferem o ônus do pagamento dos leitores para os autores ou seus financiadores, e são insustentáveis para muitos pesquisadores do América Latina, Portugal e Espanha”, disse. Cueto contou que as APCs foram adotadas por editoras com fins lucrativos, e são incentivadas por grandes agências da Europa e dos Estados Unidos da América. Algumas universidades e governos no Brasil e na América Latina já estão pagando ou utilizando as APCs.
“A Capes aceita e ajuda no pagamento das APCs para alguns periódicos. Por outro lado, não existe clareza entre os editores e autores da diferença entre as APCs e as contribuições para o custo de publicação (as CCPs), defendidas pelo SciELO, que são contribuições financeiras sem fins lucrativos que ajudam a cobrir os custos parciais da publicação de resultados de pesquisas em acesso aberto. Segundo seus defensores, são diferentes das APCs. É uma questão se essas contribuições constituirão o modelo a ser seguido pelas revistas brasileiras de ciências humanas”, afirmou.
Segundo o historiador, a maioria dos pesquisadores das ciências humanas conhece pouco ou não considera uma prioridade a ciência aberta. “Ainda precisamos adaptar a ciência aberta às humanidades”, disse. Ele explicou que existem resistências à utilização de repositórios preprints ou às avaliações abertas pelo temor de críticas aos professores seniores, além de dificuldades econômicas das revistas para criar estruturas e publicar avaliações abertas, número de revisores insuficiente e poucos repositórios para dados abertos nas universidades.
“No momento, é importante participar ativamente das discussões sobre o conteúdo e as práticas da ciência aberta, fomentar a participação nos fóruns de editores de revistas científicas, promover alguma forma de governança regional dos periódicos e fomentar o uso de uma gama diversa de métricas e indicadores para potencializar o diálogo entre ciência e sociedade”, concluiu Cueto.
Tapuya!
Presença internacional na mesa, Vivette García Deister, editora-chefe da revista Tapuya – Latin American Science, Technology and Society, da Universidade Nacional Autônoma do México, apresentou o periódico de acesso aberto em inglês, com revisão por pares, que tem como objetivo levar o pensamento latino-americano sobre ciência, tecnologia e sociedade (STS, na sigla em inglês) a leitores globais, debater os efeitos do STS global na América Latina e ser um foro de discussões Sul-Sul sobre o tema. Tapuya é publicada pela editora Taylor & Francis e filiada à Asociación Latinoamericana de Estudios Sociales de la Ciencia y la Tecnología (Esocite) e à Society for the Social Studies of Science (4S).
“Ao publicar pesquisas de STS sobre e da América Latina e outras regiões periféricas, a Tapuya desafia e expande os atuais estudos de ciência, tecnologia e sociedade”, afirmou a editora.
Vivette apresentou o modelo comercial da revista (dourado), que cobra custos aos autores (APCs), mas concede descontos e isenções de taxas. Tapuya recebe financiamento privado externo, principalmente da Universidade da Califórnia (Ucla), e faz acordos com instituições de ensino e pesquisa da América Latina, como o feito no Brasil com a Unicamp, que concede gratuidade de publicação a pesquisadores que tiverem artigos aprovados.
Entre as vantagens do modelo, a editora destacou que nenhuma instituição é “proprietária” da revista, e nem ela compete com revistas semelhantes na América Latina, além de se encaixar nas formas predominantes de se medir produtividade acadêmica. Esta também é uma das desvantagens, já que reforça os atuais indicadores de produtividade, considerados falhos. Outra desvantagem é que o modelo dourado (APC) atende ao desafio do acesso aberto, mas não necessariamente da ciência aberta.
Vivette contou que o próprio nome da revista tem várias explicações. Segundo o site da Tapuya, o termo era usado pelos Tupi para designar pessoas que não falavam a língua Tupi – os colonizadores – como os Tupi falam. Numa referência à suposta identidade desse grupo como canibais, Tapuya seria a prática de “engolir” práticas do norte e transformá-las em algo distintamente latino-americano. Em consonância, a editora destacou na sua apresentação: “A Tapuya precisa encontrar maneiras de intervir de forma produtiva nas práticas do Norte Global e do Sul Global.”
A revista aceita submissões de artigos originais e de revisão de literatura, além de resenhas de livros. Conheça e siga Tapuya em seus diversos meios digitais: https://linktr.ee/tapuyalasts
RAC: de olho na ética em pesquisa qualitativa e nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
Editor da Revista Administração Contemporânea (RAC) de 2021 até maio de 2024 e professor da Universidade Federal da Paraíba, Marcelo de Souza Bispo contou que a RAC é uma revista tradicional na área, e sempre teve acesso aberto. Com 27 anos de funcionamento, ao ser criada, financiada pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Anpad), e não por uma universidade ou instituição específica, tinha como objetivo diminuir a endogenia e promover uma pluralidade em torno dos temas, dando voz à produção nacional na área de administração. Além disso, era preciso se profissionalizar e se indexar nas bases de dados.
Bispo contou que, nos últimos anos, a RAC vem fazendo dois movimentos: entrar na ciência aberta, provocada pelo movimento do SciELO; e pensar políticas para isso funcionar. Surgiram então dilemas de ordem operacional e filosóficos, e um desafio: como trabalhar com pesquisas qualitativas, e como fazer isso levando em conta os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, o que é uma quebra de paradigma, pensar que impactos do fazer gestão, do fazer administrativo, implicam para outros lugares para além das próprias organizações que estão sendo administradas. “Esse é o desafio maior e o foco da revista hoje”, disse.
“Ao rever as políticas de acesso aberto com olhar especial tanto às questões quantitativas, relacionadas à sofisticação estatística que existe hoje, computacional e de desenho estatístico, para dar mais transparência sobre como acessar os códigos, as fontes utilizadas, o passo a passo da construção de dados, e como aumentar a transparência da pesquisa qualitativa sem ferir os preceitos filosóficos e éticos”, explicou.
O editor contou que hoje explicam aos autores que é preciso, além de contactar as pessoas para conceder as entrevistas para as pesquisas, perguntar se estariam dispostas que suas histórias sejam colocadas em repositórios, para que outras pessoas possam ler. Outro passo é produzir uma justificativa bem balizada sobre o porquê de não disponibilizar as histórias como dados abertos de pesquisas qualitativas. “Essa justificativa acaba sendo um bom exercício para a revista e para autores porque leva à reflexão sobre o que de fato é a geração de dados com seres humanos e as implicações disso”, colocou.
Bispo acrescentou que a RAC tem três características: ser financiada pela Anpad, com um bom investimento; sempre pensar como aperfeiçoar a qualidade do que é publicado; e como dialogar com a ciência aberta. “Dependendo da área que se produz conhecimento, o preprint, que é uma questão chave da ciência aberta, pode ser mais ou menos interessante. Na área de administração quase não se usa, por várias questões”, comentou. E provocou: “Pensar ciência aberta com cânones muito bem delimitados e sem espaço para revisitar a noção de ciência aberta fecha a ciência.”
Ciência aberta na Fiocruz: um “ecossistema”
Do acesso aberto aberto dos nove periódicos científicos até plataformas online que promovem a ciência cidadã, a ciência aberta na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) é como um “ecossistema” que reúne um “grande guarda-chuva de práticas e iniciativas”, conforme apresentou a coordenadora do Fórum de Editores Científicos da Fiocruz, Vanessa Jorge, da Vice-presidência de Educação, Informação e Comunicação, no evento em comemoração aos 30 anos da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, realizado com transmissão online em 7 e 8 de agosto de 2024.
Vanessa observou que a perspectiva de uma ciência aberta está na própria missão da Fiocruz, que é produzir, disseminar e compartilhar conhecimentos e tecnologias.
“Estamos falando de uma ciência colaborativa, compartilhada, pensando nos princípios como universalização, equidade, integralidade, diversidade e gênero”, disse, e enfatizou que também são enfocadas “questões filosóficas, que envolvem vários tipos de interesse, dos comerciais à busca pelo capital científico, para não fazer uma discussão ingênua de ciência aberta, descontextualizada”. Na área de humanidades, por exemplo, o texto dos termos de consentimento livre e esclarecido (TCLE) foi mudado, incorporando a questão dos dados de seres humanos.
Na mesa “Ciência aberta nas revistas científicas de humanidades”, ela contou que a instituição está se posicionando politicamente dentro desse contexto a partir de suas grandes áreas: na educação, com uma disciplina transversal e cursos a distância gratuitos, programas específicos para trabalhadores que estimulam a reflexão, no acesso aberto “diamante” das revistas científicas, que não pagam nem para publicar nem para ler, e mais recentemente no campo dos dados, com um repositório de dados institucionais – o ArcaDados. O primeiro grupo a querer participar do ArcaDados foi das ciências sociais e humanas – o Projeto Valoriza: Saúde em Foco – ações de educação, prevenção e promoção da saúde e qualidade de vida voltadas à comunidade carcerária, da Fiocruz Brasília.
Outro exemplo é um projeto sobre medicinas tradicionais, complementares e integrativas de um grupo de pesquisa da Fiocruz, o ObservaPics. Vanessa, que é arquivista, mostrou a árvore de dados abertos deste projeto, que já teve mais de mil downloads, o que mostra um interesse por estes dados, estruturados no software Dataverse, desenvolvido em Harvard, que tem um livro de visita que permite que o pesquisador fique sabendo qual o interesse do visitante naquele dado e pode fazer colaborações. Ela acrescentou que já existem exemplos de colaborações feitas com os dados depositados.
Assista a mesa “Ciência aberta nas revistas científicas de humanidades” a partir de 1h03m no vídeo abaixo, com mediação de Jaime Benchimol, ex-editor de HCS-Manguinhos e pesquisador da COC/Fiocruz.
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