Estilos radicais como rock e punk dos anos 1980 não atingem paradas de sucesso hoje

Abril/2024

ENTREVISTA | Anderson Leite

Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos

Anderson Leite

Há 40 anos, canções com letras radicais do rock brasileiro e até do punk conseguiam chegar às paradas de sucesso. Hoje, este espaço no ranking da música popular é ocupado hegemonicamente por estilos como “sofrência” e “agronejo”, impulsionados pelo poder econômico e político do agronegócio. É o que desvenda Anderson Leite, um dos autores do artigo Apocalipse pop: representações do fim do mundo em canções brasileiras da década de 1980, publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v. 30, 2023), nesta entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos.

Na década de 1980, o temor de uma guerra nuclear e de crises ambientais de dimensões imprevisíveis transparecia em letras de músicas de estilos variados que se destacavam entre as mais tocadas. No artigo em HCS-Manguinhos, Anderson Leite, analista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, e Emerson Ferreira Gomes, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo, analisam canções lançadas de 1980 a 1989, no contexto da Guerra Fria, cujas letras retratam as expectativas em relação ao futuro obscuro do Brasil e da humanidade.

Blog de HCS-Manguinhos: Seria possível fazer um paralelo da conjuntura mundial hoje com a música brasileira atual, uma vez que estamos diante de temores semelhantes aos daquele tempo, com a Terra à beira de colapsos, seja pela degradação ambiental ou por guerras, inclusive nuclear?

Anderson Leite: Mais que um paralelo, acredito que a atual conjuntura mundial e brasileira é fruto das mudanças econômicas e sociais ocorridas nas décadas de 1970 e 1980, tais como descritas no artigo. A atual precarização das relações de trabalho e a financeirização da economia decorrem do neoliberalismo instituído pelos governos Reagan e Thatcher há mais de 40 anos. Além disso, na cena política atual existem ideólogos que apoiam essas mudanças, tais como os conservadores, liberais e anarcocapitalistas. Boa parte do atual atrativo político da extrema direita sobre o eleitorado advém desse processo de precarização e da inépcia dos governos socialdemocratas em dar uma solução efetiva ao problema.

Já a hegemonia do sertanejo nas paradas de sucesso é tão somente a ala musical do soft power do agronegócio, cujo o maior símbolo é a campanha “O Agro é Pop”. O poder do agribusiness é efeito direto do processo de desindustrialização da economia brasileira iniciada também na década de 1980. A parte do artigo que trata de Cubatão descreve bem como se deu o início desse processo de colapso do desenvolvimentismo.

No contexto internacional, a própria Guerra da Ucrânia tem suas raízes no fim da Guerra Fria, pois o colapso da União Soviética não conseguiu resolver as contradições entre as antigas repúblicas soviéticas e a Otan.

Blog de HCS-Manguinhos: O crescimento do agronegócio teria impulsionado a indústria musical para longe das questões socioambientais, ou existe alguma tendência “ecológica” na música rural

Anderson Leite: A atual fase de expansão territorial, cultural e econômica do agronegócio não dá margens ao discurso ambiental. No máximo, existem traços de uma nostalgia rural, que recai em uma idealização pueril da vida no campo, mas mesmo essa vertente está desaparecendo no sertanejo. As novas gerações de artistas sertanejos são oriundas de capitais e cidades do interior de porte médio, bem distantes do mundo rural tematizado pelas duplas de 50 anos atrás.

Além da mistura de hedonismo com “sofrência”, típica das letras atuais do sertanejo, o que se tem é uma tendência denominada pelo pesquisador GG Albuquerque de “agronejo”, que faz uma exaltação ostensiva do poderio econômico do agronegócio.

Blog de HCS-Manguinhos: Que estilos hoje seriam análogos ao rock e ao punk dos anos 80

Anderson Leite: Primeiramente, vale destacar que o momento histórico de fim da ditadura, a construção da Nova República e o modo como a indústria musical trabalhava na época possibilitaram um raro momento em que as paradas de sucesso tiveram a presença de canções com letras tão críticas e politizadas como se deu durante parte da década de 1980. Basta lembrar que discos como Cabeça Dinossauro (Titãs, 1986) ou canções como Faroeste Caboclo (Que País É Este, Legião Urbana, 1987), com seus mais de oito minutos, foram sucessos na grande mídia. Não acredito que esse momento volte, inclusive pelas mudanças que indústria da música sofreu.

Além do mais, o próprio rock tornou-se um estilo de nicho e cada vez mais irrelevante para as novas gerações. O período áureo do rock, que vai da década de 1960 até início dos 1980, no qual o estilo conseguiu unir contracultura, vanguardas estéticas, comportamentais e políticas com sucesso mercadológico, ficou para trás. Não surpreende que parte dos atuais fãs do estilo sejam tremendamente reacionários.

Pior, um dos efeitos da internet foi estandardizar ainda mais a canção popular em comparação ao que se tinha até a década de 1990. Basta ir no YouTube e assistir programas como Globo de Ouro ou Cassino do Chacrinha para constatar como as paradas de sucesso eram bem mais variadas. As playlists do Spotify não permitem essa saudável mistura de antes. Dito isso, acredito que, no caso do Brasil de 2024, existem estilos e tendências musicais tão ou mais radicais quanto o rock e o punk o foram em seu auge. Mas não consigo ver nenhum deles atingindo as paradas de sucesso.

Posso citar o Funk Mandelão de São Paulo do DJ K e Funk de BH do DJ Anderson do Paraíso, na qual a cultura dos bailes funk se junta com experimentalismos sonoros extremos. Artistas como Tertuliana Lustosa e Crizim da Z.O. apresentam letras extremamente politizadas aliadas a uma sonoridade contemporânea. Outros nomes de destaque são Juçara Marçal, Edcity, d.silvestre, Negro Leo, Mariá Portugal, Ava Rocha, Luisa Lemgruber, Rodrigo Campos, Maciel Salú, Urias, LEALL ou o disco “Mimosa” de cabezadenego, Leyblack e Mbé.

Aproveitando a oportunidade, várias das questões colocadas pelo artigo são aprofundadas e expandidas em meu livro “Do modernismo ao bolsonarismo: 100 anos de uma fantasia desfeita”,  a sair em breve pela Editora Kotter.

Leia mais no Blog de HCS-Manguinhos:

Apocalipse pop: há 40 anos, canções sobre o fim do mundo
Artigo analisa letras de músicas da década de 1980 que refletiam mudanças da expectativa nacional com relação ao futuro, diante do temor de desastres nucleares e ambientais

Leia na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos:

Apocalipse pop: representações do fim do mundo em canções brasileiras da década de 1980, artigo de Anderson Cleiton Fernandes Leite e Emerson Ferreira Gomes (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 30, 2023) 

Ciência, tecnologia, rock e poesia
Artigo em HCS-Manguinhos aborda a obra de Humberto Gessinger, que integrou a banda Engenheiros do Hawaii