A captura de ratos e a construção de conceitos sobre zoonoses no início do século XX

Julho/2022

Matheus Alves Duarte da Silva

Pesquisador de pós-doutorado na Universidade de St. Andrews, Reino Unido, o historiador brasileiro Matheus Alves Duarte da Silva integra o projeto ‘The Global War against the Rat and the Epistemic Emergence of Zoonosis’, liderado pelo professor Christos Lynteris e patrocinado pelo Wellcome Trust. Duarte investiga a história social e científica das práticas de captura de ratos desenvolvidas no Brasil, nos EUA e nos impérios francês e britânico durante a primeira metade do século XX. Ele concedeu entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos.

Quais as principais questões em estudo no seu projeto na Universidade de St Andrews?

A principal questão de pesquisa é compreender como a guerra contra os ratos desempenhou um papel no surgimento de pelo menos três conceitos centrais ao raciocínio zoonótico no século XX: reservatórios, invasividade de espécies e epizootias. Esta guerra começou no final do século XIX para enfrentar a terceira pandemia da peste (1894-1959), mas incluiu outras doenças, como a leptospirose e o tifo murino, e foi impulsionada também por razões econômicas, como a destruição de alimentos por ratos.

Para entender essas inovações no raciocínio zoonótico, o projeto se divide em três “frentes” dessa guerra: examina as técnicas empregadas para matar ratos e roedores silvestres, como caça direta, fumigação e envenenamento; estuda inovações arquitetônicas para evitar o contato desses animais com humanos (conhecidas como práticas de rat-proofing); e investiga a produção epistemológica em diversos laboratórios microbiológicos possibilitada pelo conhecimento acumulado ao longo dessas ações sanitárias. O projeto desenvolve esses três pacotes de trabalho por meio de pesquisa de arquivos na Índia, África do Sul, Estados Unidos, Argentina e Brasil.

Em suma, os principais interesses e metodologias do projeto estão na interseção da história global, história da ciência e medicina e estudos animais, que podem fornecer uma rica análise histórica do surgimento de zoonoses que se tornaram pandemias. 

Você poderia falar um pouco sobre suas pesquisas e publicações atuais?

Ilustração de um rato. Fonte: The New York Public Library Digital Collections. 1870 – 1899.

Dentro do projeto, estou particularmente interessado em dois pontos distintos, mas às vezes convergentes, da guerra contra o rato. Por um lado, estou pesquisando o papel das agências supranacionais de saúde, a saber, o Office International d’Hygiène Publique (OIHP), na “construção” dos ratos domésticos como um objeto universal que precisava ser controlado em escala global. Em outras palavras, pesquiso como o rato se tornou um agente que fomentou a colaboração internacional. Por outro lado, estou estudando a invenção, circulação e transformação de uma série de conceitos que visavam descrever a peste sendo “conservada” em outras paisagens que não portos e cidades.

O mais importante e duradouro desses conceitos foi o de “peste silvestre”, criado em 1927 pelo médico português Ricardo Jorge após um levantamento organizado pelo OIHP. Com essa ideia, Jorge pretendia descrever a infecção da peste entre roedores selvagens que vivem no que chamou de ambientes desérticos ou estepes. Surpreendentemente, temos até agora poucos trabalhos históricos sobre o ofício desse conceito e sobre suas origens imperiais e científicas, apesar da presença atual da peste silvestre em várias partes do mundo, e sua conexão epistemológica com doenças relacionadas, como febre amarela. Para entender o surgimento da peste silvestre como uma nova entidade, estou trabalhando em duas direções.

Em primeiro lugar, estou escrevendo uma história da invenção do conceito usando os arquivos de Jorge, mantidos na Biblioteca Nacional Portuguesa em Lisboa, e documentos do OIHP encontrados em vários arquivos. Esta pesquisa será publicada em breve em uma edição especial sobre reservatórios de doenças. Em segundo lugar, discuto a ideia geral de doenças emergentes ou reenquadradas como um problema ontológico e epistemológico em um ensaio em coautoria com o colega de meu projeto Jules Skotnes-Brown, que em breve estará na Edição Especial de Pandemias do IsisCb (acesse o ensaio e o processo de avaliação inovador da edição especial aqui).

Junto com esses estudos mais globais, também estou focando na luta contra os ratos e nos debates sobre os cenários da peste no Brasil. Ambas as questões são particularmente representadas pelos trabalhos do Serviço Nacional de Peste (SNP) (1941-1956), cuja trajetória institucional foi recentemente examinada por Simone Luna em uma dissertação de mestrado inovadora defendida na Casa de Oswaldo Cruz. O Serviço atuou especialmente no interior do Nordeste, liderando ações de captura e proteção de ratos, mas também investigando o papel de uma infinidade de roedores silvestres locais, como mocós, preás, punarés e cotias, na conservação e disseminação da praga.

Os membros do serviço foram então centrais na invenção de novas categorias para descrever o contexto em que estavam atuando – elaborando conceitos como “peste rural” e “peste campestre rural”, entre outros – e na transformação de ideias anteriores, como a de peste silvestre , que no Brasil começou a descrever uma potencial infecção por praga entre roedores que vivem em florestas tropicais e não em ambientes de estepe. Juntamente com a documentação escrita, o arquivo principal do SNP é composto por uma coleção de quase 60 mil roedores silvestres capturados no Nordeste de 1951 a 1955 e mantidos no Museu Nacional, que felizmente sobreviveram ao incêndio que destruiu parcialmente a instituição em 2018. Estou muito grato ao professor João Alves de Oliveira por abrir a coleção e compartilhar comigo fontes inéditas. Graças a este e outros materiais, Simone Luna e eu estamos escrevendo um artigo sobre a história da peste no Brasil de 1900 a 1955, explorando paisagens brasileiras reais e imaginárias da peste, desde os portos da época de Oswaldo Cruz até a Amazônia no década de 1950.

Além disso, a partir de agosto de 2022, serei pesquisador visitante na Gloknos, Universidade de Cambridge, onde investigarei o surgimento da peste rural na  América Latina entre as décadas de 1920-50, com foco no Brasil e na Argentina. Discutirei como essa ideia interagiu com projetos de construção nacional e modernização da saúde pública, bem como com estudos globais sobre ratos e roedores selvagens. Também pretendo examinar a emergência do rural na América Latina tanto como espaço de estudos da peste quanto como “laboratório” para produzir novos conhecimentos sobre medicina e ciência. Com isso, quero ampliar os debates sobre o papel da América Latina na Ciência da História Global, objeto que explorei em duas publicações recentes:

Baudry, J., Lin, Y., Hellman, L., Ito, K., Alves Duarte da Silva, M. & Tilley, H. (2022).  Beyond “Plato to NATO”. Navigating the Global Turn in the History of Science, Technology, and Medicine. Monde(s), 21, 97-116.

Silva M.A.D.., Cueto M. (2022)  From the Social to the Global Turn in Latin American History of Science. In: Barahona A. (eds) Handbook of the Historiography of Latin American Studies on the Life Sciences and Medicine. Historiographies of Science. Springer, Cham. https://doi.org/10.1007/978-3-030-74723-7_17

Clique para ler a entrevista completa em inglês

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De Bombaim ao Rio de Janeiro: circulação de conhecimento e a criação do Laboratório de Manguinhos, 1894-1902 – Artigo de Matheus Alves Duarte da Silva (vol.25, no.3, jul./set. 2018)

“Não é meu intuito estabelecer polêmica”: a chegada da peste ao Brasil, análise de uma controvérsia, 1899 – Artigo de Dilene Raimundo do Nascimento e Matheus Alves Duarte da Silva (vol.20, supl.1, nov. 2013)

Ideias, práticas e instituições da medicina naval na origem da medicina tropical francesa – Resenha de Matheus Alves Duarte da Silva para o livro The emergence of tropical medicine in France, de Michael Osborne, 2014, University of Chicago Press (vol. 23, n. 3, set 2016)