Fevereiro/2022
Por Karine Rodrigues
No dia 8 de junho de 2020, uma segunda-feira, empresas de jornalismo do país publicaram notícias idênticas. Assim como o texto, o título se repetia: “Veículos de comunicação formam parceria para dar transparência a dados de Covid-19″. Diante da decisão do governo federal de restringir as estatísticas divulgadas sobre a pandemia, O Estado de S.Paulo, Extra, Folha de S.Paulo, O Globo, G1 e UOL formaram uma parceria para dividir tarefas e compartilhar as informações obtidas nos 26 estados e no Distrito Federal. À época, o Brasil contabilizava cerca de 36 mil óbitos e 694 mil casos confirmados de infecção pelo novo coronavírus. Quatro dias antes, se tornara o terceiro país do mundo em número de mortos.
Ao limitar a divulgação de dados sobre a situação da Covid-19 no Brasil, deixando de informar o número acumulado de casos e mortes e liberando as informações diárias com atraso, o governo federal “tentou instrumentalizar o discurso científico”, destaca o historiador Alexandre de Paiva Rio Camargo, pesquisador da área de sociologia da quantificação e professor do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), da Universidade Cândido Mendes.
Em artigo na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), Camargo analisa de que forma os dispositivos de quantificação, como tabelas e gráficos, podem ajudar a resolver controvérsias e formar consensos sobre enunciados científicos. Ele investigou o lugar dessas tecnologias entre a revolução pasteuriana, nos anos 1890 – quando surgem novos procedimentos médicos, como a identificação de microorganismos causadores de doenças -, até o surgimento do movimento sanitarista, no fim dos anos 1910.
A análise revela que a quantificação dos fatos biomédicos ajudou a impulsionar a construção da autoridade sanitária. No início do período analisado, os boletins e anuários de demografia sanitária serviam tão somente como registro dos efeitos das campanhas sanitárias realizadas nos grandes centros urbanos da capital federal e de São Paulo, comprovando sua eficácia, porém sem determinar o planejamento das ações sanitárias. Só mais adiante, na segunda década dos 1900, a quantificação da saúde assume uma dimensão nacional. O anuário estatístico do Brasil, com dados de 1912 e publicado em 1916, “é o primeiro a dispor as informações de maneira a apontar as disparidades no desenvolvimento dos estados e, assim, fundamentar indiretamente a centralização da autoridade sanitária”.
Revival das tensões entre clínicos e microbiologistas
Quando Camargo submeteu o artigo à publicação, em novembro de 2019, a palavra Covid-19 nem sequer existia, mas o pesquisador vê pontos de contato entre o período analisado e o atual. Um deles diz respeito às diferenças de visão, tensões e rivalidades entre médicos clínicos e microbiologistas. Antes da padronização nas estatísticas sanitárias, os dados sobre mortalidade por doenças dependiam exclusivamente da observação direta do médico ao preencher o registro de óbito.
Até que surgiu em cena o médico pasteuriano, que passou a considerar exames laboratoriais na confirmação do diagnóstico, em meio à adesão do Brasil à primeira classificação internacional de doenças, criada em 1893. Na ausência dos exames laboratoriais, a designação “erro de diagnóstico” passa a ser empregada para presumir a omissão dos clínicos na correta aplicação dos procedimentos padronizados de registro, o que era visto por muitos deles como uma ingerência em seu trabalho.
“A pandemia de Covid-19 é um fato social total, mas é sobretudo um fato de laboratório. Ao mesmo tempo, existe um revival, grosso modo, dos médicos clínicos em tentar reaver uma autoridade, com um discurso conservador e, muitas vezes, com um braço negacionista. Uma medicina clínica que faz do médico uma espécie de pastor de vidas. Esse discurso da observação direta junto aos pacientes voltou como uma espécie de argumento de autoridade que qualifica os médicos em relação aos epidemiologistas, que estão vendo tudo à distância, desde os laboratórios, as universidades e os centros de cálculo, longe do que eles acreditam que seja a verdadeira realidade, nua e crua”, avalia o historiador.
União e estados em cooperação no combate às doenças
Outro ponto em que passado e presente se tocam é a interdependência sanitária, destaca Camargo, que atualmente está trabalhado em uma pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) sobre as estatísticas da Covid-19, com artigo já publicado na revista Mediações, da Universidade Estadual de Londrina.
Apesar de a Constituição de 1891 estabelecer que cada estado deveria dar conta de si, em matéria de higiene e educação, o fato de as doenças cruzarem facilmente as divisas estaduais e os limites municipais das unidades da federação, progressivamente mostrou que a questão exigia uma abordagem diferenciada, uma ação coordenada, em proveito mútuo. Diante de um problema nacional, União e estados firmaram acordos de cooperação para reduzir seus custos no enfrentamento de males públicos.
“Como não era possível estabelecer uma fronteira sanitária entre estados vizinhos, a dinâmica da migração interna tendia a reintroduzir continuamente epidemias que os elevados gastos com a infraestrutura de saúde, assumidos por estados mais desenvolvidos como São Paulo, haviam conseguido mitigar ou controlar”, escreve o historiador no artigo, destacando o pioneirismo de Gilberto Hochman, pesquisador da Casa, nos estudos que revelam como a transmissibilidade da doença foi sendo percebida como um problema nacional.
Camargo considerou em seus estudos sobre quantificação o argumento de Hochman de que, na Primeira República, havia um movimento de coordenação da atividade sanitária que não precisou passar pela centralização política, respeitando a moldura jurídica constitucional da época. Já no Brasil de hoje, se prefere apagar a dimensão nacional da saúde pública, justamente o que foi construído nesse período da Primeira República com as estatísticas sanitárias, acrescenta o pesquisador.
“Mas o que estamos vendo hoje são estados e municípios tendo que disputar no Supremo (Tribunal Federal) a autonomia para realizar as suas ações, e um governo federal que renega o seu papel coordenador no nível da quantificação em saúde e da produção das estatísticas sanitárias, posterga a publicação dos dados ou condescende implicitamente com a possibilidade de um apagão estatístico, e, ao mesmo tempo, rejeita trabalhar com os estados e municípios na compilação dos dados de casos e mortes, pois prefere dar maior visibilidade ao número de curados e diminuir a gravidade do número de mortes”.
Os números como medida comum
Na revista HCS-Manguinhos, Camargo descreve a construção do que ele intitula espaço de medida comum, que permite comparar o que, em uma sociedade escravista ou estamental, onde a desigualdade é valorizada como um fato natural, permanece incomparável. Os números públicos surgem, segundo ele, como essa “medida comum”, permitindo assim que a população, tão desigual, fosse cotejada entre si, com base em suas equivalências, diante, por exemplo, de fenômenos biológicos.
A pandemia, acrescenta, deixou clara a centralidade da quantificação na vida pública, no dia a dia das pessoas. “Os números têm um poder performativo imenso na organização da experiência que vamos ter, por exemplo, de um evento sísmico como esse que vivemos atualmente. Então, antes de sair à rua, os números são importantes para guiar a conduta. Se aumentou o total de casos, se a taxa de ocupação de leitos hospitalares está muito alta, se esgotaram-se os testes, é necessário ter mais resguardo, tanto em casa quanto na rua. Toda essa forma de monitoramento da própria conduta pessoal é mediada pelos números hoje em diferentes níveis”, diz Camargo.
A dimensão social da tuberculose
Mas o número não fala sozinho, destaca o pesquisador, citando o caso da tuberculose, que, em 1895, liderava o índice de mortalidade no Rio de Janeiro, cidade de maior incidência no mundo. Embora os dados da doença já fossem alarmantes, não despertavam o interesse particular de médicos ou pasteurianos e nem havia uma atenção profilática.
Quais as condições que permitiram isso? É que a partir de 1907, explica Camargo, após a reforma urbana e sanitária empreendida por Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro, o foco dos médicos vai se voltando para as doenças crônicas, como a tuberculose, e para as dimensões sociais da enfermidade. Para combatê-la, seria necessário se deter sobre questões relacionadas, por exemplo, à moradia, à higiene e à alimentação.
Então no comando da Diretoria Geral de Saúde Pública, Cruz observou à época, em relatório ministerial de 1907, que a tuberculose puxava a mortalidade no país para cima, fato que exigia uma mudança na reforma sanitária. Na série histórica das chamadas moléstias evitáveis, não se via uma diminuição de casos da doença, como ocorria com as demais, fruto da falta de medidas preventivas específicas. A tuberculose, então, passa a ser gradualmente vista como doença evitável, embora não o fosse antes, quando já alcançava índices alarmantes.
Para o pesquisador, essa discussão também remete à pandemia atual, quando está em pauta a responsabilidade política pelas mortes evitáveis causadas pelo novo coronavírus: “A estatística não é só um número. É também a categoria pela qual se nomeiam pessoas, lugares e objetos, estabelecendo uma ordenação, uma hierarquia. A pandemia [de Covid-19] trouxe a categoria ‘mortes evitáveis’. Qual é essa quantificação de pessoas que poderiam não ter morrido, de quantos casos poderiam não ter existido e como se atribui uma responsabilidade política por essa ação ou omissão?”, questiona.
Por mais pesquisas sobre estatísticas na história da saúde
Embora, segundo Camargo, o período considerado no artigo publicado na HCS-Manguinhos seja o mais estudado na história da saúde no Brasil, ele avalia que ainda é pouco considerado quando se trata de analisar a dimensão dos números e das práticas por ele mediadas. O pesquisador atribui esse cenário à exigência de uma bagagem teórico-conceitual e metodológica para se trabalhar com as estatísticas. “Não é um objeto comum na historiografia. É um campo que permanece aberto e em construção. O próprio artigo convida a que outros investimentos, maiores e melhores, sejam feitos nessa linha”.
Sobre a Covid-19, o consórcio midiático que diariamente noticia os brasileiros sobre a situação da pandemia no país segue em curso. A autoridade estatística foi mantida, mas desde dezembro do ano passado o Brasil enfrenta uma nova dificuldade no monitoramento da Covid-19 após a ocorrência de um ataque hacker ao sistema de notificação oficial do Ministério da Saúde.
Fonte: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz
Leia na revista HCS-Manguinhos:
Estatísticas sanitárias e interdependência social na Primeira República, artigo de Alexandre de Paiva Rio Camargo (HCS-Manguinhos v. 28, n. 4, out/dez 2021)