Saúde humana era a principal defesa do vegetarianismo no Brasil há um século

Fevereiro/2022

 Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos

Ilustração na matéria “Os males que a carne nos faz”. Eu Sei Tudo. Magazine Mensal Illustrado. Rio de Janeiro, n. 8, jan. 1918, p. 54. Hemeroteca Digital. Biblioteca Nacional

Os malefícios causados pela ingestão de carne às pessoas eram a base da argumentação do vegetarianismo no Brasil no início do século XX. Naquela época, a defesa da vida dos animais era secundária e não significava, necessariamente, a abolição de hierarquias e assimetrias entre a humanidade e os demais seres vivos. Quem revela é a historiadora Natascha Stefania Carvalho De Ostos, pós-doutoranda no Instituto René Rachou (Fiocruz Minas) e uma das editoras convidadas do número especial sobre a história da relação entre animais da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v. 28, supl., dez/2021). Ela é autora do artigo “Carnivorismo é uma civilização”: vegetarianismo brasileiro e discursos sobre os animais, 1902-1940.

Natascha Ostos

Em entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos, Natascha Ostos explica por que a dieta vegetariana era considerada por seus defensores como “capaz de produzir indivíduos física e moralmente saudáveis” e seria “a ponta de lança para um programa de regeneração social”. Apesar de o movimento da época também promover a preservação da vida animal, esse fundamento, segundo a pesquisadora, não era predominante como é hoje.

Ela também comenta nesta entrevista as relações históricas entre vegetarianos, positivistas e protetores de animais, aborda diferentes visões de vegetarianos sobre vacinas e tratamentos que utilizam animais em sua produção e ainda discute problemáticas contemporâneas envolvendo conceitos como “escravidão / abolição animal”.

Blog de HCS-Manguinhos: Seu artigo analisa discursos produzidos pelo movimento vegetariano brasileiro no início do século XX. Quais eram os principais argumentos na época?

Natascha Ostos: Naquele período a defesa do vegetarianismo estava ancorada, principalmente, nos prolatados benefícios dessa dieta para a saúde humana. Para subsidiar tal ponto de vista, o movimento vegetariano brasileiro buscou respaldo na ciência, reproduzindo em seus discursos dados de estudos que afirmavam as vantagens de uma dieta vegetariana e os malefícios da ingestão de carne. O objetivo maior era encontrar um regime alimentar capaz de evitar e curar doenças, prolongando a vida das pessoas.

Em um contexto mais amplo, o vegetarianismo do início do século XX sustentava o “retorno” do homem a uma vida mais natural, que envolveria não somente a adoção de uma dieta sem carne, como também a prática de exercícios físicos, o uso de vestimentas confortáveis e maior contato com a natureza.

Uma ideia muito presente era a de que indivíduos e sociedade viviam um processo de deterioração física e moral, em razão do seu afastamento daquilo que era tido como natural. Os hábitos e formas de vida “artificiais” (ingestão de carne e álcool, fumo, abuso de medicamentos, excessos alimentares) seriam responsáveis, no conjunto, por vários problemas: alcoolismo, obesidade, doenças, desequilíbrios mentais, comportamento agressivo. Assim, a defesa de uma dieta vegetariana era a ponta de lança para um programa de regeneração social que, aliada a outros princípios, seria, segundo os adeptos, capaz de produzir indivíduos física e moralmente saudáveis.

O movimento vegetariano da época também argumentava que a adoção do vegetarianismo promovia a preservação da vida animal, mas esse fundamento, apesar de presente em muitos discursos, não era predominante. Na documentação analisada sobressai o apelo da conquista da saúde como base de defesa do vegetarianismo, e da tentativa de convencimento do público em geral. Trata-se de um elemento interessante, porque indica a historicidade do movimento vegetariano, relevando que em cada momento histórico os adeptos do vegetarianismo conferiram maior ou menor importância a certas motivações, premissas e convicções. Nos dias de hoje, em que existe grande sensibilidade social com relação à chamada causa animal, o movimento vegetariano (que é plural e diverso) parece muito impulsionado pela defesa dos animais.

No artigo publicado neste número especial de HCS-Manguinhos, você diz que os ativistas vegetarianos tinham uma perspectiva idealizada da natureza. Por quê?

Analisando as fontes pesquisadas, observei que os ativistas vegetarianos da época tendiam a ver a natureza como uma realidade inofensiva, pacífica, aprazível, abundante, ressaltando seu estado de harmonia e os elementos de boa convivência e cooperação entre os seres. Era essa natureza idealizada, sem conflitos e disputas, que o ser humano deveria imitar. Desconsiderava-se, quase sempre, dinâmicas do mundo natural mais duras, e o fato de que a “harmonia”, ou o equilíbrio da natureza, também dependem de relações ecológicas que implicam em predação, competição por água, alimento, território, abrigo, sendo que a morte faz parte desses processos.

“O homem primitivo era como o símio um frugívero; somente a necessidade durante o período glacial pode tê-lo obrigado a se alimentar com carne”, diz a legenda (Os males…, 1918, p.56)

Na perspectiva idealizada de muitos vegetarianos da época, as “leis naturais” eram aquelas que coincidiam com os princípios defendidos pelo movimento, a exemplo do que afirmou um ativista: “matar um animal para devorá-lo é infringir uma das leis mais harmoniosas da Natureza” (Cícero dos Santos. O Imparcial, Rio de Janeiro, n. 170, 23 maio 1913, p. 9).

A idealização também se expressava na atribuição de características positivas essencialistas aos animais herbívoros, alvo de simpatia por parte dos vegetarianos, descritos como pacíficos, brandos, dóceis, destituídos de agressividade. Esses traços seriam supostamente derivados dos seus hábitos alimentares, já que tais bichos não ingeriam sangue/carne, considerados elementos “tóxicos” para o organismo, e propulsores de comportamento negativos.

Além disso, o movimento vegetariano da época tendia a representar o ambiente natural, contraposto à “artificialidade” das cidades, como uma espécie de Jardim do Éden, livre de doenças, puro e aprazível. Porém, até onde foi possível pesquisar, muitos dos adeptos do vegetarianismo de então eram integrantes das camadas médias urbanas, tendo contato eventual com uma natureza “controlada”, em sítios, jardins e parques. Esses locais estavam longe de apresentarem as mesmas condições dos ambientes naturais mais duros, onde a sobrevivência dependia de lidar com vários desafios: animais peçonhentos, insetos vetores de doenças, organismos que acometiam os cultivos agrícolas, condições climáticas difíceis etc.

Existem registros históricos de debates vegetarianos sobre vacinas, por usarem animais em sua produção?

Na pesquisa não me deparei com um debate específico do ativismo vegetariano sobre vacinas, mas encontrei essa discussão em outro movimento, o positivismo, em que alguns líderes defendiam o vegetarianismo. Tratava-se de uma ala do movimento, que era fragmentado em diferentes grupos. A Igreja Positivista do Brasil, então chefiada por Miguel Lemos, publicou, em 1902, uma circular de autoria de Lemos, intitulada Positivismo e Vegetarismo. No documento, ele defendia que os positivistas adotassem o regime vegetariano, não apenas por questões de saúde, mas principalmente por razões morais, pois o sacrifício de animais para o consumo humano não se justificaria diante do princípio positivista do altruísmo.

Alguns anos depois, em 1908, Miguel Lemos escreveu outro panfleto, intitulado A Vacina e a Proteção dos Animais. O documento foi elaborado no formato de carta, dirigida a Carlos Costa, diretor da Sociedade Brasileira Protetora dos Animais. A motivação do texto foi o fato de que Costa abriu um posto de vacinação, à disposição do público, na sede da organização. Lemos, que reafirmou ser vegetariano, se disse surpreendido pela medida, já que, segundo ele, o preparo da vacina contra a varíola utilizava vitelos para sua produção, resultando no sacrifício e sofrimento dos animais. Carlos Costa respondeu publicamente, argumentando que os positivistas nunca auxiliaram a sociedade protetora e que ele, como médico e higienista, não considerava contraditório apoiar a vacinação (preservando vidas humanas) e ser ativista da causa animal. Esse episódio é significativo, pois demonstra que adeptos do vegetarianismo e defensores dos animais nem sempre estavam alinhados. Não existia um único modo de compreensão das relações humano-animal, o campo era disputado.

De modo geral, os vegetarianos eram favoráveis a meios ditos naturais de prevenção, tratamento e cura de doenças, pela adoção da dieta vegetariana, prática de exercícios físicos, banhos terapêuticos, ambientes ventilados etc. A ideia era que tais hábitos fortaleceriam a imunidade dos indivíduos, tornando-os resistentes a doenças, sendo desnecessário o uso de compostos artificiais para a conquista da saúde. Essa crença teria levado o vegetariano argentino, comandante Astorga, a se auto inocular, em 1912, com o bacilo Koch, causador da tuberculose, de modo a comprovar que os praticantes do vegetarianismo, supostamente mais saudáveis e resistentes, seriam imunes à doença. A imprensa brasileira acompanhou o caso com interesse, noticiando a evolução das condições de saúde do ativista. O comandante adoeceu, e segundo relato de jornal, no local da inoculação teria surgido um “grande tumor”, com recomendação médica de extração cirúrgica, mas Astorga recusou o procedimento, “declarando que se curará a si próprio desse tumor, por meio de aplicações de barro” (A Noite, Rio de Janeiro, n. 329, 03 ago. 1912, p. 2).

Em 1913, o programa da Sociedade Vegetariana Brasileira (então chamada de Naturista), incluía a propaganda das “Curas naturais”. A Sociedade prestou solidariedade a Astorga ao longo do seu processo de adoecimento e, quando da sua morte por tuberculose, em 1917, manifestou pesar. Assim, naquela época, a recusa de alguns adeptos do vegetarianismo ao uso de vacinas ou tratamentos “antinaturais”, poderia ser motivada tanto pela rejeição de produtos derivados de animais, como pela crença de que substâncias e métodos “artificiais” eram contrários aos princípios de uma “vida natural”.

Hoje há um debate sobre a necessidade de se abolir a “escravidão animal” e o “especismo”, em alusão ao racismo e à ideia de supremacia humana. Poderia comentar, à luz dos seus estudos?

Essa questão lida com conceitos complexos, que dizem respeito a experiências e acontecimentos históricos específicos. Parte do movimento em defesa dos animais, que por vezes se recobre com setores dos movimentos vegetariano/vegano, usa com muita liberalidade as noções de “escravidão animal” e “racismo” para comparar a opressão animal com situações históricas de escravidão, particularmente das pessoas negras. Grosso modo, segundo tal pensamento, os animais seriam os “novos escravos”, sujeitos às mesmas situações de dominação, sofrimento e objetificação que marcaram a escravidão de seres humanos no passado. Como desdobramento dessa premissa, os adeptos da ideia defendem que, seguindo o processo de “evolução” social e moral que levou à abolição da escravidão de seres-humanos, o desdobramento lógico seria a “abolição dos animais”.

Atualmente existe uma intensa discussão acadêmica, e por parte de defensores dos animais e ativistas do movimento negro, sobre a adequação e os limites desse tipo de analogia. De um lado, argumenta-se que a comparação ajudaria a questionar as categorias de humano e animal, hierarquizadas com base em marcadores biológicos/espécie, que ancoram o sistema de dominação/exploração dos humanos sobre os bichos, desnaturalizando esse sistema. Por outro lado, os críticos de tal posição argumentam que, ao equiparar situações de escravização humana/animal, desconsidera-se as especificidades e experiências históricas das pessoas escravizadas, equivalência que esvazia sofrimentos e vivências. Outro questionamento é que, ao afirmar que a “abolição animal” é o “próximo passo” para a ampliação da justiça para todos os seres, fica subentendido, não apenas uma compreensão teleológica dos processos sociais, como também a ideia de que a escravidão é um fato do passado, superado, ao invés de fenômeno que se atualiza no presente, perpetuado no racismo e em estruturas políticas, econômicas, culturais, de exclusão das pessoas negras. Nesse sentido, aponta-se para o risco de instrumentalização de conceitos que também são práticas históricas, usando imagens e relatos da escravidão apenas para chamar a atenção para a causa animal, sem real interesse pela luta das pessoas negras por justiça e igualdade. Por fim, a crítica ressalta que ao comparar animais com pessoas escravizadas reafirma-se, mesmo sem intenção, o que Bénédicte Boisseron chamou de “subtexto negro-animal” (2018, p. IX), que durante séculos associou, como tentativa de inferiorização, pessoas negras com animais/animalidade. O fato do movimento em defesa dos animais, em diálogo com segmentos do vegetarianismo, lutar pela desestabilização de categorias essencialistas homem/animal, não tornaria a comparação com a escravidão/racismo menos problemática.

Porém, a própria Bénédicte Boisseron e outros intelectuais consideram que tais discursos, justamente por terem uma longa história, não podem ser ignorados, tampouco tratados pelo viés da animosidade entre os diferentes movimentos. Talvez fosse mais rico contestar e expor a divisão humano/animal por meio de relações que não reinscrevam sujeitos históricos em narrativas discriminatórias, atentando para contextos específicos de dominação. Ao mesmo tempo, é importante refletir sobre similaridades e padrões nos sistemas de opressão (negros, mulheres, LGBT+, animais etc), pois eles possuem conexões históricas. Mas seria interessante fazer isso em conjunto, trazendo para o diálogo os diversos campos de estudo (dos animais, étnicos, de gênero), respeitando suas especificidades e historicidade, mas, ao mesmo tempo, desafiando essências identitárias, de forma a construir/desconstruir interconexões que qualifiquem o debate.

Referência:

BOISSERON, Bénédicte. Afro-Dog: Blackness and the Animal Question. New York: Columbia University Press, 2018.

Leia na revista HCS-Manguinhos:

“Carnivorismo é uma civilização”: vegetarianismo brasileiro e discursos sobre os animais, 1902-1940, artigo de Natascha Stefania Carvalho De Ostos (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 28, supl., dez/2021)

Reciprocidades em desequilíbrio: história das relações entre animais, Carta dos Editores Convidados Regina Horta Duarte, Gabriel Lopes, Natascha Stefania Carvalho De Ostos e Nelson Aprobato Filho (HCS-Manguinhos, v. 28. supl., dez/2021)

Acesse o número especial sobre relações entre animais (HCS-Manguinhos, v. 28. supl., dez/2021)

Leia também no Blog de HCS-Manguinhos:

Release do suplemento especial sobre a história das relações entre animais

Reviravolta animal: antídoto contra arrogância humana
“Os animais estão deixando de ser coadjuvantes passivos para se tornarem coprodutores da história”, afirma Regina Horta Duarte, uma das editoras convidadas de número especial

Leia ainda na revista HCS-Manguinhos:

Em busca do novo Éden no século XX: os portugueses e a fundação de colónias naturistas no Brasil artigo de Isabel Drumond Braga (HCS-Manguinhos, v. 25, n. 3, jul./set. 2018)