Janeiro/2022
Além de uma sensação biológica, o termo “fome” também significa um conceito multifacetado e historicamente colocado, que se transforma conforme a mudança da sociedade na qual está inserido. Um artigo publicado na atual edição da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos traz resultados de uma de pesquisa sobre o entendimento da fome no Brasil, cujas conclusões são instrumentos até para se pensar a crise instalada pelo coronavírus, quando a fome voltou a ser destaque.
No artigo de revisão historiográfica Josué de Castro e as metamorfoses da fome no Brasil (1932-1946) (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. 28, n. 4, out/dez 2021), que complementa um dossiê sobre a questão do leite na América Latina, a historiadora Adriana Salay Leme, doutoranda em História Social na USP, mostra como a categoria fome foi historicamente construída no Brasil.
Por meio das discussões propostas por Josué de Castro e sua inserção social, a pesquisadora examina as representações da fome entre 1932 e 1946, ano no qual o autor lançou o livro Geografia da fome. A partir da literatura, da imprensa de grande circulação e de discussões científicas, Adriana analisa como a fome era entendida nesse período e conclui que a noção do fenômeno como permanente e estrutural surgiu só no século XX, e capitaneada por Josué de Castro. Até então esta noção não era senso comum. Sob orientação do professor Miguel Palmeira, o estudo – ainda em andamento – aborda como as categorias se transformam.
Segundo Adriana Salay Leme, o trabalho mostra que a forma como se entende fome mudou ao longo da primeira metade do século XX a partir das novas ferramentas científicas e debates da época, entre eles o surgimento da nutrição, a produção literária e a imprensa. “Até então o termo, usado enquanto um problema coletivo, estava muito mais vinculado à crise, um fenômeno que saia do curso regular dos acontecimentos. Uma seca sertaneja ou uma guerra, por exemplo, poderiam ser fatores geradores de fome aguda chegando a registros de casos de canibalismo. Mas com o descobrimentos das calorias, vitaminas e debates como a racionalização da alimentação e a noção de mínimo vital, o sentido de fome alarga-se e passa a levar em consideração também a fome estrutural presente no cotidiano”, explica a autora.
Nascido em 1908 em Pernambuco, Josué de Castro, médico de formação, foi figura notória no debate e na luta contra a fome no Brasil. Autor de diversos livros, chegou a ser presidente do conselho da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e candidato ao prêmio Nobel da Paz e da Medicina. Ele definiu duas categorias: a fome endêmica – oculta, que está nas periferias da cidade – e a fome epidêmica – as crises de fome, mais agudas e que causam maior comoção, mas com curto período de existência.
“Com a pandemia e a crise instaladas, o tema da fome volta a pauta central e tais categorias analisadas no trabalho podem ser úteis para entender o momento atual e direcionar, inclusive, saídas possíveis”, afirma Adriana Salay Leme.
Leia na revista HCS-Manguinhos:
Josué de Castro e as metamorfoses da fome no Brasil (1932-1946), artigo de Adriana Salay Leme (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, vol. 28, n. 4, out/dez 2021)
Acesse o sumário desta edição de HCS-Manguinhos (v. 28, n. 4, dez/2021), que traz dossiê sobre a questão do leite na América Latina
Leia também:
A fome de ontem e de hoje no Brasil
Encontro às Quintas de 19 de agosto de 2021, sob coordenação de Tânia Salgado Pimenta, contou com a participação dos historiadores Adriana Salay Leme (USP) (a partir do minuto 10’22), Denise De Sordi (UFU) e Rômulo de Paula Andrade (COC/Fiocruz). Assista!
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