Da radiação ao genoma humano, questões éticas permeiam filmes do Incrível Hulk

Dezembro/2021

Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos

Ao longo da sua história como super-herói no cinema, O Incrível Hulk sempre viveu e representou as complexidades e dualidades da imagem pública da ciência e dos cientistas. Questões éticas relativas a novas possibilidades tecnológicas em diversas áreas da ciência e da saúde norteiam os enredos dos quatro filmes lançados do personagem – dois no final da década de 1970 e dois nos anos 2000.

Analisar como as representações de ciência e de cientistas mudaram historicamente nestes filmes foi o objetivo de Fernando Alves da Silva Filho, Luisa Massarani e Erik Stengler, que assinam o artigo Superaventuras e a representação da ciência: um olhar histórico para as produções cinematográficas sobre O Incrível Hulk nas décadas de 1970 e 2000, publicado na atual edição da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (v. 28, n. 4, dez/2021). 

O Blog de HCS-Manguinhos entrevistou Fernando Alves, doutorando em Ensino em Biociências e Saúde no Instituto Oswaldo Cruz/Fiocruz, que em 2019 defendeu dissertação sobre o tema no mestrado em Divulgação da Ciência, Tecnologia e Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, sob orientação de Luisa Massarani.  

Por que o Hulk?

Fernando Alves

A escolha do super-herói Hulk foi feita com base no teor dos roteiros e temáticas deste personagem. Suas narrativas focam em temas científicos sobre tópicos controversos – genoma humano, clonagem, transgênicos, usos nucleares, segurança pública e políticas de sigilo-, especialmente ligados a testes em seres humanos que precisam ser debatidas em comissões de ética. Além disso, espelham o imaginário social relacionado às concepções de ciência, às preocupações que tais temas da ciência podem suscitar e atitudes mediante a recepção de um público heterogêneo, isso é, que diverge no modo de pensar, discutir e decidir tais questões controversas.

Dentre os muitos super-heróis potencializados por conceitos científicos, escolhemos o personagem Robert Bruce Banner, vulgo O Incrível Hulk, principalmente, porque seus criadores Stan Lee e Jack Kirby, deixam explicito as influências em contos como “O estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde” de R.L. Stevenson, escrito em 1886, e o livro “Frankenstein” de Mary Shelley, publicado em 1818. Em palavras do criador Stan Lee, a escolha desses dois clássicos literários como referências na construção do personagem se deu porque englobam as complexidades e dualidades da imagem de ciência e cientistas, originalmente inspiradas na figura do cientista-alquimista, umas das primeiras e longevas representações públicas da ciência.

Outro fator que nos levou à escolha deste super-herói foi que as narrativas do personagem Hulk são baseadas em questões relativas à ciência, tecnologia e saúde durante todas as publicações do século XX e continuam presentes no século XXI, em que o cientista e a ciência podem ser idealizadas para grandes feitos, no entanto dependendo das aplicações podem gerar medo, repulsa e sofrimento.

Quais as principais mudanças observadas?

As principais mudanças observadas foram as tecnológicas, o modo de fazer cinema evoluiu (e continua evoluindo), mas não foi o foco do estudo. Porém, a evolução tecnológica em mídias audiovisuais é algo que chama a atenção quando se compara obras de diferentes épocas, porque causa impacto nos efeitos especiais, na composição das cenas, na fotografia, nos roteiros, nas atuações dos atores e como as ideias são apresentadas ao público. 

As análises dos filmes mostraram diferenças no sentido de que as produções antigas, com menor orçamento, não tinham efeitos computadorizados e possuíam menor tempo de duração, devido ao núcleo menor de atores e figurantes, enquanto as produções mais atuais com maior orçamento disponível, possuem elencos numerosos, tecnologias de edição com efeitos especiais computadorizados, maior duração e, consequentemente, proporcionam mais acurácia nos elementos representativos da cultura científica.

Mesmo que os personagens cientistas e a ciência sejam importantes nas histórias da dupla Banner e Hulk, a evolução tecnológica e as tendências de cada época foram bem exploradas pelos diretores. Os filmes da década de 1970 são mais dramas românticos, enquanto os filmes dos anos 2000 são marcados pela ação explosiva e aventura. Sem contar que os assuntos de ciência apresentados nos filmes coincidem com os assuntos de ciência efervescentes em suas respectivas épocas.

Na década de 1970, o enfoque se deu nos efeitos radioativos das práticas de física nuclear e os estudos em saúde mental com a expansão dos centros universitários, dos movimentos sociais que  avançavam com ideias pacíficas contra a Guerra do Vietnam. Já nos filmes dos anos 2000, a ênfase foi dada à engenharia genética condizendo com o desenvolvimento do Projeto Genoma Humano, formado por pesquisas colaborativas internacionais com objetivo de entender mais sobre o DNA e buscar possibilidades para cura e imunidade contra doenças que afligem os seres humanos.

Lê-se no artigo: “Somando os quatro filmes, são apresentados dez cientistas do gênero masculino, diversificados em quatro estereótipos: alquimista louco, cientista desamparado, cientista insensato e cientista nobre. E quatro cientistas de gênero feminino, em três estereótipos: a mulher solteirona, a especialista inocente e a filha/assistente.” Por que são estereótipos? 

Os arquétipos dos personagens são identificados como estereótipos com base nos referencias teóricos utilizados na pesquisa. Seguindo a Teoria das Representações Sociais e a revisão bibliográfica utilizadas em estudos que analisam e discutem filmes de ficção apresentando temas de ciência e os cientistas conceituamos os estereótipos mais frequentes e as inspirações de produtores na construção das narrativas e contextos de ambientação dos filmes.

Há uma crítica implícita nessa conclusão?

(Risos) Mais uma contestação do que uma crítica, visto que um dos resultados da pesquisa mostra que a representação de cientistas nos filmes do Hulk segue a tradição dos quadrinhos ao apresentá-los como homens brancos de meia idade fazendo ciência. As mulheres cientistas representadas são poucas e apresentam o mesmo perfil de donzelas em perigo como apoio para o desenvolvimento sentimental do protagonista masculino. Esse desbalanceamento está começando a mudar nas produções de filmes mais recentes baseados em superaventuras, em que personagens mulheres começam a ganhar protagonismo, especialmente as cientistas Dr. Isabel Maru em “Mulher Maravilha” (2017), a Princesa Shuri do Reino de Wakanda em “Pantera Negra” (2018), Dra. Wendy Lawson, Marie Rambeau e Dra. Minerva em “Capitã Marvel” (2019).

A partir da pesquisa, foi possível concluir se existe ou não uma tendência histórica de rompimento com estereótipos?

Essa tendência histórica de rompimento com estereótipos acontece de forma mais heterogênea entre personagens masculinos do que femininos. Algo que a literatura sobre estereótipos e representação de cientistas demonstrou foram transformações de estereótipos: os arquétipos se modificam para refletir os sentidos culturais das épocas em que os filmes são produzidos.

Como aponta Roslynn Haynes em seus estudos, cada época histórica é marcada por conjuntos de características específicas, formando estereótipos. E David Kirby afirma que esses estereótipos em produções cinematográficas se tornam representações sociais cristalizadas no entendimento público da ciência porque as “audiências facilmente reconhecem as caricaturas de cientistas” e filmes de ficção disponibilizam “preocupações sociais, atitudes sociais e mudanças sociais em relação à ciência e à tecnologia”.

Entre 1930 e 1950 a representação dos cientistas em filmes esteve ligada ao cientista louco, recluso, sigiloso que fazia uso de seus conhecimentos (quase) arcanos de forma descontrolada e sem medir consequências (boas ou ruins) para atingir seus objetivos de conquistar poder e riquezas. Entre 1951 e 1976 apareceram novas características para os cientistas e novas ameaças criadas pela ciência, tomando como inspiração os usos da energia atômica. Até a década de 1970, os cientistas eram representados na cinematografia como emissários do caos, mas, nas décadas de 1980 e 1990, há consideráveis mudanças nas representações com a criação dos cientistas heróis, que passam a ser mais humanizados e heterogêneos.

Essas mudanças não abandonam estereótipos mais antigos, elas são somadas, misturadas e aprofundam as caracterizações dos personagens, formando um efeito bola de neve, certos estereótipos são utilizados porque são reconhecidos pelos públicos; e os públicos reconhecem e assimilam esses estereótipos porque são mais utilizados.

O estudo poderá interessar a pesquisadores de quais áreas? 

Antes do sucesso crescente das superaventuras no cinema, especialmente, no início do século XXI, os super-heróis em uniformes coloridos e chamativos eram considerados entretenimento direcionado ao público infanto-juvenil. Tais estereótipos estão sendo desmistificados e esse tipo de narrativa tem ganhado a atenção de pessoas interessadas em estudar suas características em diferentes níveis acadêmicos desde o ensino médio até pesquisadores de pós-graduação.

Acreditamos que esse estudo pode interessar a pesquisadores, estudantes e fãs de superaventuras. Principalmente, professores e estudantes das áreas de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas nos quais os aspectos socioculturais possam ser usados para explicar as potenciais conexões entre os conteúdo curriculares usando elementos sociais do cotidiano, tendo os filmes baseados em superaventuras como ponto de partida.

Qual a importância de estudos como este?

A importância de estudos como este é demonstrar que os filmes populares podem ser mais do que entretenimento casual. Com todo o sucesso que os filmes baseados em superaventuras têm feito, também podem desenvolver discussões existentes na compreensão pública sobre assuntos de ciência. E, quem sabe motivar outros pesquisadores a trabalharem o tema superaventuras em seus estudos.

Os fãs do Hulk e de outros super-heróis que migraram dos quadrinhos para as telonas também podem se interessar pelo estudo? Por quê?

Sim, podem! Essa é a esperança da pesquisa. Por muito tempo as histórias em quadrinhos, especialmente, os super-heróis foram considerados literaturas infanto-juvenis, coisa de criança sem valor acadêmico. Atualmente, o sucesso dos filmes de superaventuras tem demonstrado a abrangência e aceitação que essa mídia tem entre públicos de diferentes origens, faixas etárias, sexo, orientação cultural e acadêmica. Esperamos que esse estudo possa aproximar e levar os fãs de super-heróis a se aproximarem dos assuntos acadêmicos.   

Leia na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos:

Superaventuras e a representação da ciência: um olhar histórico para as produções cinematográficas sobre O Incrível Hulk nas décadas de 1970 e 2000, artigo de Fernando Alves da Silva Filho, Luisa Massarani e Erik Stengler (História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v. 28, n. 4, dez/2021)

Como citar este post:

Da radiação ao genoma humano, questões éticas permeiam filmes do Incrível Hulk. Entrevista de Fernando Alves a Marina Lemle. Blog de HCS-Manguinhos. Publicada em 20/12/2021. Disponível em www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/da-radiacao-ao-genoma-humano-questoes-eticas-permeiam-filmes-do-incrivel-hulk/