Novembro/2021
Vivian Mannheimer | Blog de HCS-Manguinhos
Em 1952, uma droga recém descoberta em um hospital psiquiátrico de Paris, a clorpromazina, prometia revolucionar o campo da saúde mental. Acreditava-se que finalmente a psiquiatra tinha conseguido a cura para diversas doenças mentais, e que o novo medicamento seria tão importante para o campo da saúde mental como a penicilina tinha sido para a medicina.
Em um artigo publicado na última edição de HCS-Manguinhos, Sobre la llamada revolución psicofarmacológica Sandra Caponi, professora do Departamento de Sociologia e Ciências Políticas da Universidade Federal de Santa Catarina, questiona essa ideia.
Para ela, a função da droga era deixar os pacientes tranquilos, portanto, não teria havido uma ruptura em termos de efeito terapêutico, uma vez, que os efeitos continuavam sendo os mesmos dos tratamentos já existentes na época: a indiferença, o desinteresse, a calma e a disciplina.
De Paris, onde estava em uma missão de trabalho como coordenadora de um Projeto Capes- Cofecub, em conjunto com a Universidade Paris 8 – A disseminação dos saberes expertos no domínio da infância – Sandra conversou com o nosso blog por zoom sobre a medicalização da saúde mental e da infância na perspectiva das ciências humanas.
Você trabalha há muitos anos com temas como a medicalização da saúde mental e da infância. Dentro desse universo, quais são as grandes discussões e enfoques historiográficos?
Essa é uma temática que foi ganhando cada vez mais interesse nos últimos dez anos pela quantidade de crianças usando medicamentos psiquiátricos. Como esses diagnósticos não são nada precisos, vemos pesquisadores de diversos âmbitos – sociologia, ciências sociais, história – que se debruçam sobre o tema da medicalização, em particular, da infância, uma vez que essa não é uma decisão autônoma da criança, mas envolve outras questões, como o papel da família e da escola. Muitas vezes as famílias não têm escolha e devem aceitar o diagnóstico, mesmo sem estar de acordo. Então, há algumas questões éticas, sociológicas, históricas e epistemológicas muito interessantes para serem discutidas.
Da perspectiva da história da psiquiatria, eu diria que há duas ou três abordagens historiográficas bem interessantes. Uma é a história das instituições, a história dos hospitais psiquiátricos e dos processos de desmanicomialização. Outra possibilidade historiográfica muito interessante é o trabalho com arquivos. Temos trabalhos riquíssimos como os de Cristiana Facchinetti ou Viviane Borges. Elas trabalham com dados, prontuários, registros, desenhos e documentos que estão presentes nos arquivos dos hospitais psiquiátricos.
No meu caso, eu trabalho com uma perspectiva arqueológica ou genealógica, tento analisar questões do presente, a partir de uma problematização da história da psiquiatria que permita elucidar e entender de que modo começaram esses processos, que hoje parecem naturais e necessários, de intervenção médica nos sofrimentos e comportamentos considerados “anormais”.
Quando analisamos esses movimentos históricos iniciais, podemos observar que existem embates entre diferentes grupos, controvérsias e relações de poder. No caso específico da psiquiatria, a indústria farmacêutica aparece como um elemento muito importante para entender as relações de poder e a influência dos laboratórios na construção da psiquiatria moderna.
Pensando sobre quais seriam os temas mais discutidos, um deles é a questão dos diagnósticos. É muito interessante ver como esses Manuais Diagnósticos e Estatísticos de Transtornos Mentais (DSMs) foram mudando ao longo da História e existem excelentes trabalhos sobre isso. Outra questão é problematizar as diferentes terapêuticas utilizadas ao longo do tempo, um tema cada vez mais abordado. Por outra parte, devemos considerar que a psiquiatria não é só asilar, não atua só dentro do hospital psiquiátrico, temos que pensar também de que modo a psiquiatria se vincula com a sociedade em seu conjunto, fora do hospital psiquiátrico, psiquitrizando sofrimentos e comportamentos considerados socialmente indesejados.
Então, os grandes eixos de trabalho são, para mim, o diagnóstico, a instituição e as terapêuticas. Entender como as estratégias terapêuticas são empregadas e em que sentido essas estratégias terapêuticas são consideradas eficazes, funcionais. Entender questões como o que quer dizer, no campo da psiquiatria, que uma estratégia terapêutica funciona? Por que, por exemplo, durante algum tempo se achou que a lobotomia era uma boa terapêutica?
Seu livro “Loucos e Degenerados: uma genealogia da psiquiatria ampliada”, publicado em 2012 pela editora Fiocruz, fala sobre a medicalização de estados não patológicos, como a tristeza profunda, utilizando Foucault como referencial teórico. Como as ideias de Foucault se relacionam com esses temas?
O livro é completamente foucaultiano. É um texto que trabalha a ideia da medicina do não patológico. Analiso de que modo foram integrando-se ao discurso médico, comportamentos não desejados em crianças, comportamentos sexuais, emoções não desejadas, ainda que esses fatos sociais fujam inicialmente da lógica médica do normal e do patológico.
Foucault trabalhou esse tema em um livro chamado Os Anormais, em que ele mostra como que essa categoria de normalidade foi sendo recoberta pelo discurso médico. A categoria de anormalidade não é necessariamente médica, poderia ser uma categoria jurídica, ou social, por exemplo. Mas foi se cobrindo pelo discurso médico, de modo que as anomalias foram vinculando-se historicamente ao patológico, à doença.
Foucault tem um trabalho muito interessante que insiste no fato de que a psiquiatria é muito mais poderosa, muito mais potente, quando ela está fora do seu lugar de nascimento, que é o hospital psiquiátrico. Quando a psiquiatria entra na escola, na vida das crianças, na família, é ali que ela se torna mais poderosa.
É nesse sentido que o livro é totalmente foucaultiano. O tema que eu analisei foi a construção dos diagnósticos. Parecia-me muito estranho como as categorias de diagnósticos iam aumentando em cada novo Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais. Desde os anos 1980 até hoje passamos de cento e poucos diagnósticos para mais de trezentos.
Foucault trabalha a teoria da degeneração de uma forma muito interessante. Ele vai dizer que o degenerado é o anormal medicalizado. A medicina vai entrar nas famílias, nas relações familiares, para controlar as degenerações hereditárias. A teoria da degeneração foi muito potente no campo da psiquiatria e permitiu gerar esse movimento de criar categorias médicas para abordar questões sociais que de alguma maneira incomodavam. Por exemplo, Magnan criou uma categoria psiquiátrica, ou diagnóstico, referido à loucura dos vegetarianos, que ele definiu como uma patologia vinculada a um amor exagerado pelos animais. Desse modo, qualquer elemento considerado socialmente disruptivo podia ser transformado em categoria psiquiátrica.
Como mencionei, Foucault trabalha o problema da degeneração no curso Os Anormais, e no livro “Loucos e degenerados” eu tentei retomar a questão para pensar o surgimento das formas de diagnóstico atuais. Essa elasticidade, a ideia de que sempre se pode inventar mais uma patologia, mais um nome, mais um diagnóstico tem a ver com uma tradição histórica da psiquiatria que se abre a partir da teoria da degeneração, e aí está a ponte com Foucault.
Essa estrutura explicativa da psiquiatria permite que comportamentos socialmente indesejados, passem a ser traduzidos em termos médicos. Por exemplo, uma criança inquieta, que não para na sala de aula, ou uma criança muito distraída, aquela que “vive no mundo da lua”, podem passar a ser diagnosticadas como crianças que padecem um transtorno como TDAH (transtorno de déficit de atenção com hiperatividade).
Essas mesmas crianças, 20 anos atrás, teriam sido, simplesmente, consideradas como crianças distraídas ou inquietas. Do mesmo modo, uma criança que não respeita os professores ou dá respostas um pouco violentas, que antes era considerada como uma criança mal-educada, hoje pode receber um diagnóstico psiquiátrico como TOD (Transtorno opositor desafiante).
Há outro elemento que vincula esse livro com Foucault. Aquilo que Foucault chamou de “dispositivo de segurança”, que se refere à antecipação de riscos, a ideia de que é preciso antecipar a ocorrência de uma patologia que pode vir a acontecer no futuro. Assim, a tendência de medicalizar crianças cada vez mais novas baseia-se no argumento de que uma intervenção médica precoce, nos primeiros anos de vida, permitirá antecipar e evitar riscos futuros.
Isso se faz independentemente de ter qualquer dado ou indicação médica, nem outro tipo de informação que indique se essa criança terá ou não uma patologia psiquiátrica no futuro. No entanto, muitas vezes é prescrita uma medicação psiquiátrica, Ritalina para TDAH, Risperidona para TOD, com o argumento de que se deve intervir medicamente antes de que a patologia se manifeste, isto é, quando aparecem supostos sintomas subclínicos, sem considerar que esses tratamentos podem trazer mais danos do que benefícios.
Seu artigo Sobre la llamada revolución psicofarmacológica: el descubrimiento de la clorpromazina y la gestión de la locura, publicado na última edição da Revista História Ciências Saúde – Manguinhos questiona a ideia de que essa droga revolucionou o campo da psiquiatria. Por quê? O que a descoberta dessa droga realmente significa?
A clorpromazina é considerada, até hoje, como sendo a primeira droga psiquiátrica. Essa droga foi descoberta em 1952, no hospital Sainte-Anne de Paris, pelos psiquiatras Jean Delay e Pierre Deniker. Eles acreditavam que essa droga iria revolucionar o campo da psiquiatria. Essa descoberta teve muito impacto na psiquiatria internacional, pois, acreditava-se que, finalmente, com a clorpromazina, a psiquiatra conseguiria realizar intervenções médico- farmacológicas eficazes, do mesmo modo que ocorria em outras áreas médicas. Como a psiquiatria era vista com certo desprezo no campo da medicina, acreditava-se que, com a descoberta da clorpromazina, ela poderia, finalmente, conseguir reproduzir o modelo médico, contando com um medicamento para curar as doenças mentais.
Na época se fazia uma analogia com a penicilina, afirmava-se que a clorpromazina teria uma função tão importante para a saúde mental como a penicilina tem no campo das doenças infecciosas. Hoje já não se faz mais essa analogia com a penicilina, mas se reproduz a mesma lógica com outra medicação que é a insulina. Os defensores da clorpromazina, afirmam que a droga tem uma função no tratamento das doenças mentais, análoga à função que tem a insulina para o tratamento da diabetes.
Nesse momento se produz uma ruptura com as formas anteriores de intervenção, que eram muito violentas, como a lobotomia, o eletrochoque, o choque insulínico, as duchas, o ópio. Todas essas intervenções mais mecânicas passaram a ser substituídas por uma intervenção química, sem desaparecer. Existem vários autores, entre eles, Judith Swazey, que vão dizer que a entrada da psiquiatria na medicina vai se dar justamente com a descoberta da clorpromazina.
O artigo publicado em Manguinhos, assim como o livro “Uma sala tranquila” apresentam outra perspectiva sobre essa descoberta, que surgiu olhando para a história dessa droga. Eu tive a oportunidade de trabalhar no arquivo do Hospital Sainte-Anne, em Paris, com os documentos dos psiquiatras que descobriram a clorpromazina, e comecei a observar que eles se referiam ao efeito terapêutico desejado da droga. Algumas perguntas surgiam inevitavelmente dos documentos. Para que servia essa droga? Controlava as alucinações? Não. A equipe do Hospital Sainte Anne afirmava que as pessoas continuavam tendo alucinações. Controlava a angústia, a tristeza? Não. Então, qual era a função da droga? Os documentos diziam que as pessoas quando tomavam essa droga ficavam indiferentes ao mundo, indiferentes à dor, passavam a sentir-se separadas do mundo como se existisse um tabique invisível. Ficavam calmos, tranquilos, com os olhos baixos, perdiam a expressão e não tinham mais interesse no mundo. O que me impactou profundamente é que isso era visto como um efeito desejado, algo terapeuticamente bom, e até hoje esse parece ser o efeito procurado.
A função da droga era deixar as pessoas muito calmas, pois a clorpromazina é um tranquilizante muito potente. E, certamente, com as pessoas calmas e sedadas tornava-se muito mais fácil gerir um hospital psiquiátrico. Porque, obviamente, não é fácil gerir um hospital com pessoas que gritam, que tiram a roupa, que fazem cocô em qualquer lugar. O meu argumento é que não é possível falar de revolução terapêutica, nem de ruptura no campo da psiquiatria, como argumenta Swasey, quando pensamos a partir da perspectiva do efeito terapêutico desejado, porque esse efeito terapêutico continua sendo o mesmo que antes era logrado por intervenções mecânicas como a contensão: a conquista da calma, a indiferença, o desinteresse, e a imposição da disciplina. Quer dizer, não vejo muita diferença em relação às intervenções anteriores, muitas das quais continuam até hoje, como o eletrochoque.
A clorpromazina é uma droga muito interessante para se estudar porque toda a psiquiatria que utiliza psicofármacos, vai se construir a partir desse momento. De fato, não sabemos muito bem como essa droga age no organismo. Há uma fragilidade em relação a explicação biológica da ação desse medicamento. Existe a hipótese dopaminérgica de ação da droga, que é posterior a sua descoberta, segundo essa hipótese não comprovada, a droga agiria restabelecendo um desequilíbrio neuroquímico no cérebro.
Outros autores, como Moncrieff ou Davies, pelo contrário, afirmam que a droga não age no organismo restabelecendo equilíbrio neuroquímico alterado, mas sim, produzindo algo como uma intoxicação no cérebro. Essa intoxicação faz com que a pessoa fique sedada, atordoada, além de ter efeitos colaterais severos, como parkinson, acinesia e acatisia. Esses efeitos tem a ver com os estereótipos que temos sobre os doentes mentais, como movimentos robotizados, ou rostos inexpressivos e sem movimento. A resposta a esses problemas não foi a retirada da medicação, pelo contrário, novos medicamentos foram criados para controlar esses efeitos colaterais indesejados.
A clorpromazina também é o tema do seu último livro Uma Sala Tranquila – Neurolepticos Para Uma Biopolitica da Indiferença. Você poderia falar mais um pouco sobre o livro?
Além de analisar a descoberta da clorpromazina, o que tentei fazer foi descrever o que ocorreu quando essa droga foi vendida para um grande laboratório americano, na época chamado Smith Kline and French, hoje GlaxoSmithKline. O laboratório deu início, em 1954, a uma imensa campanha publicitária para divulgar e vender a clorpromazina, sob o nome de Thorazine. Esse foi o ponto de partida para algo que é muito forte nos Estados Unidos até hoje, imensas e muito agressivas campanhas publicitária de drogas psiquiátricas dirigidas aos médicos e ao público em geral, o que, ao mesmo tempo, amplia o espectro das patologias e a população considerada como potencial consumidora de drogas psiquiátricas.
No início, a clorpromazina destinava-se especificamente a pacientes que estavam dentro dos hospitais psiquiátricos. Mas a calma que se consegue com a droga permite que os pacientes voltem para suas casas. Então, começou-se a avaliar a possibilidade de usar a droga também fora do hospital psiquiátrico. A publicidade de Thorazine rapidamente passou de anúncios referidos a casos graves de psicose e esquizofrenia a anúncios que falam do uso da droga para mulheres na menopausa, crianças inquietas e nervosas, ou para idosos inconformados.
Assim, uma imensa quantidade de pessoas começou a consumir essa droga, que antes era tida como uma droga muito potente, destinada a conter os doentes das salas de pacientes agitados dos hospitais psiquiátricos. Rapidamente, a partir da segunda metade dos anos 1950, a substância passou a ser indicada para outros públicos, como por exemplo, para crianças.
O livro fala sobre isso. De fato, as abordagens críticas à psiquiatria ainda enfrentam muitas resistências. A primeira editora onde apresentei o livro, não aceitou publicá-lo. Porém, as objeções que foram apontadas não se referiam ao livro em si – sempre pode haver algo para se revisar -, mas sim ao fato de ter adotado uma abordagem foucaultiana de análise, isto é, uma abordagem crítica à psiquiatria. Argumentaram que a pesquisa seria algo assim como “uma profecia autorrealizada”, feita para confirmar os argumentos de Foucault. Enfim, é uma discussão complexa, porque é uma crítica a uma prática que está sendo realizada hoje. Ainda que existam muitos trabalhos críticos à psiquiatria desde os anos 70, esse continua sendo um tema que nem sempre é bem recebido.
Como citar esta entrevista:
CAPONI, Sandra. A medicalização do que não é doença. Entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos, por Vivian Mannheimer. Publicada em 9/11/2021. Acessível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/a-medicalizacao-do-que-nao-e-doenca/
Leia em HCS-Manguinhos:
Caponi, Sandra. Sobre la llamada revolución psicofarmacológica: el descubrimiento de la clorpromazina y la gestión de la locura. História, Ciências, Saúde-Manguinhos [online]. 2021, v. 28, n. 3.
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