‘O tempo do isolamento é um tempo de espera, e a escrita acadêmica não é exceção a isso’

Setembro/2021

ENTREVISTA COM SILVIA LIEBEL, EDITORA-CHEFE DA REVISTA VARIA HISTORIA

Silvia Liebel

Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos

A falta de acesso a fontes devido ao isolamento impôs longa pausa nas pesquisas a muitos historiadores, mas isso não justifica a submissão de artigos de qualidade duvidosa. É o que pensa, após um ano e meio de pandemia de covid-19, a editora-chefe da revista Varia HistoriaSilvia Liebel.

Fundada em 1985 pelo Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Varia Historia é uma das mais tradicionais revistas científicas da área de História no Brasil.

Buscando entender o impacto da pandemia sobre os periódicos científicos de história e humanidades, o Blog de HCS-Manguinhos entrevistou a editora, que também é professora de História Moderna na UFMG. Silvia Liebel enumerou as dificuldades enfrentadas pelas revistas e pelos autores, mas também ponderou que as próprias regras que garantem o alto padrão da Varia Historia, como o veto ao autoplágio, colaboram para a diminuição das submissões. A editora também falou da presença da revista nas redes sociais, destacando o sucesso interativo do perfil da revista no Instagram. Boa leitura!

Blog de HCS-Manguinhos: A pandemia trouxe grandes dificuldades para os periódicos científicos no Brasil, e em especial para os de áreas humanas e sociais. De que maneira acha que a pandemia afetou os periódicos de história no Brasil?

Silvia Liebel, editora-chefe de Varia Historia: Os impactos ocasionados pela pandemia em relação aos periódicos de História, acredito, sejam compartilhados pelas publicações acadêmicas de forma geral. Experimentamos um número bastante acima da média de submissões no primeiro semestre de 2020, número que pode ser interpretado como uma euforia diante do hiatus que diferentes instituições de ensino superior experimentaram e das incertezas quanto à duração do isolamento e do status da pandemia. As submissões, contudo, foram declinando ao longo dos meses seguintes, na medida em que se manifestaram de forma mais acentuada as dificuldades inerentes ao trabalho remoto, ao esgotamento profissional, à saúde coletiva e a necessidade, para muitos, de conciliação dos afazeres de todos os habitantes de uma mesma unidade doméstica em isolamento.

Mais especificamente, acredito que os periódicos de História no Brasil foram impactados pela impossibilidade de acesso aos arquivos enfrentada por muitos pesquisadores. Essa dificuldade certamente é um fator explicativo importante para a diminuição do número de submissões, pois a própria natureza do trabalho do historiador, diretamente relacionada ao acesso às fontes, é colocada em xeque com a inacessibilidade dos arquivos ou dos testemunhos. Aqueles e aquelas que não dispõem de acesso online às suas fontes, têm um acervo pessoal organizado ou trabalham com fontes literárias, por exemplo, viram-se defrontados com a imposição de uma longa pausa na pesquisa.

Como foi o impacto da Covid-19 na revista Varia Historia em termos, por exemplo, de quantidade e conteúdo das submissões?

O longo (e necessário) isolamento vigente na comunidade acadêmica brasileira impôs uma diminuição no número de manuscritos submetidos à Varia Historia, especialmente a partir de meados de 2020, e substancialmente um ano mais tarde. Toda revista acadêmica recebe artigos de qualidade muito contrastante, mas acredito que o alto padrão imposto pela Varia – que, na verdade, entendemos como nada menos que o necessário – desempenhe um papel adicional nesses números. É previsto em nosso código ético e em nossas instruções aos autores, por exemplo, que não aceitamos manuscritos com autoplágio. Isso faz com que artigos que reproduzem teses ou dissertações ipsis litteris, ou ainda que assinalem a junção de diferentes artigos e capítulos publicados previamente pelo proponente, sejam rejeitados em primeira instância. Tampouco aceitamos artigos que sejam resultado de uma parceria com uma relação de poder desequilibrada, nomeadamente que um trabalho derivado de um vínculo de orientação carregue a assinatura dos orientadores.

Ou seja, as próprias regras da revista limitam o número de submissões, e essa é uma limitação que abraçamos com o intuito de oferecer artigos realmente inéditos, construídos eticamente. Durante estes meses de isolamento recebemos de forma muito pontual artigos de qualidade duvidosa que usaram a pandemia como justificativa, afirmando que o escopo reduzido se dá em função das dificuldades de acesso às fontes ou à bibliografia – o que não é, obviamente, uma justificativa adequada. É preferível aguardar a tão ansiada volta à normalidade para publicar um artigo de qualidade. O tempo do isolamento é, afinal, um tempo de espera, e a escrita acadêmica não é exceção a isso.

Varia Historia é uma expressão latina por meio da qual desejamos afirmar nossa revista como um veículo para a diversidade e variedade da historiografia contemporânea.” Poderia comentar a frase copiada da apresentação da revista em seu site? Quão diversa é a historiografia contemporânea hoje, e que campos estão despontando? Como a pandemia influencia a historiografia?

A historiografia contemporânea se volta a uma diversidade de objetos e abordagens pouco prognosticados há vinte ou trinta anos, porque ela acompanha os anseios e transformações sociais. É natural, nesse sentido, que temas ligados à violência (de classe, de raça, de gênero) encontrem maior espaço, assim como discussões voltadas ao impacto ambiental ou ao campo do político despontem no cenário atual. Talvez vivamos mesmo a consagração do renascimento do político, como expressado por Chantal Mouffe, afinal, todas as nossas escolhas são permeadas, em algum grau, por essa perspectiva. Os impactos de nossas escolhas, de nossa participação, são uma caixa de ressonância para a forma como o mundo é construído e representado, e também para nossa escrita. É claro que temas mais tradicionais continuam (e continuarão) a integrar a produção acadêmica, mas a pandemia parece permitir um outro olhar sobre nossas escolhas profissionais, desde os objetos aos quais nos dedicamos (vários foram os textos que vieram à luz nesse período impulsionados justamente pela pandemia, tendo-a como tema central ou incidental) a, sobretudo, a forma como os tratamos.

Desde 2014, Varia Historia tem periodicidade quadrimestral, e em 2018 tornou-se exclusivamente online. Quais mídias a revista tem hoje, e como é a interação do(s) público(s) com cada uma? Há métricas específicas?

A utilização das mídias sociais como veículo de divulgação das revistas acadêmicas é fenômeno recente, mas que se mostra incontornável diante dos índices de avaliação empregados. A tradicional busca por periódicos para compor a bibliografia de um trabalho evoluiu para a pesquisa por palavras-chave na internet e o acesso a conteúdos específicos, então cabe às revistas se adaptar e encontrar novas formas de divulgar suas publicações e conquistar o público-leitor.

Varia Historia conta hoje com perfis no Facebook, no Instagram e no Twitter. Cada uma dessas mídias possui públicos e formatos bastante específicos, o que leva nossa equipe a tentar, o máximo possível, personalizar as informações transmitidas sem descaracterizar o propósito que é a divulgação da revista. Esse processo é um aprendizado em andamento, na medida em que não contamos com profissionais de marketing, jornalismo ou design – essa é uma realidade completamente alheia à maioria dos periódicos das Humanidades graças ao frágil financiamento do qual dispomos. Nosso trabalho de divulgação é levado a cabo por estagiárias dedicadas e resulta, largamente, de uma exploração instintiva do que a revista pode oferecer e do que o público demanda. 

Tendo isso em mente, o perfil com maior engajamento, hoje, é o Instagram. Enquanto o Instagram conta com apenas 2750 seguidores e o Facebook com pouco mais de 8.000, o primeiro mostra maior engajamento medido pelo número de curtidas e compartilhamentos, ou seja, há um crescimento contínuo de interações com o conteúdo. O Facebook, contudo, possui um espaço e uma dinâmica que permitem maior exposição de eventos acadêmicos e de publicações, o que é importante para revista, afinal, fazemos parte de esforços muito mais amplos de divulgação científica. O Twitter, no qual a Varia Historia conta com pouco mais de 2000 seguidores, é a mídia com menor retorno, mas isso se deve, acredito, às nossas próprias dificuldades com o formato específico e com o engajamento necessário para seu crescimento.

Recentemente, para facilitar o acesso aos artigos, a Varia Historia disponibilizou planilhas organizadas por temas, que são progressivamente atualizadas a cada nova edição. É possível avaliar o impacto da experiência com os leitores?

Não. Infelizmente não temos como medir o impacto dessa medida em termos de números de leitores atraídos por ela, mas temos alguns feedbacks de estudantes e pesquisadores que elogiam as planilhas e apontam a facilidade de acesso, sua organização e a qualidade dos textos. Para nós é motivo de alegria podermos reunir e disponibilizar de forma direta aos colegas e interessados os resultados de 35 anos de Varia Historia. O leitor e o pesquisador são, afinal, as razões de ser da revista.

Como citar este post:

LIEBEL, Silvia. ‘O tempo do isolamento é um tempo de espera, e a escrita acadêmica não é exceção a isso’, entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos, por Marina Lemle. Publicado em 23 de setembro de 2021. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/o-tempo-do-isolamento-e-um-tempo-de-espera-e-a-escrita-academica-nao-e-excecao-a-isso/

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