Junho/2013
Com a palavra… VALDEI ARAUJO
Aproveitamos a visita do professor Valdei Araujo, historiador da Universidade Federal de Ouro Preto, à redação da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos para entrevistá-lo sobre as manifestações que têm ocupado as ruas das cidades brasileiras nas últimas semanas.
O senhor acaba de fazer uma palestra sobre tempo histórico no projeto Encontro às Quintas, do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz. Muitos alunos trouxeram o tema das manifestações. O que elas dizem sobre o tempo atual?
Entre os historiadores do tempo presente e aqueles mais preocupados com questões teóricas se discute muito em torno de um certo encurtamento do futuro ou desaceleração do tempo. Dito de forma simples, a perda da utopia e dos grandes projetos políticos teria dado lugar a uma sociedade que se transforma e cresce na dimensão da ciência e da técnica, masque se transforma pouco política e socialmente. Diferente de gerações passadas, em que toda a ação estava orientada por um projeto de futuro razoavelmente organizado, a geração atual teria perdido a capacidade ou a vontade de pensar um futuro que fosse muito diferente do presente. O futuro como aprofundamento do capitalismo apresenta-se apenas como desafio ambiental, econômico e competitivo. Ao lado disso, os avanços das mídias e da escrita da história têm permitido um conhecimento cada vez maior do passado e a citação e o uso contínuo desse passado na forma de referências ou produtos. As manifestações que estão ocorrendo põem à prova essas descrições, mas certamente têm no seu centro uma geração de jovens que cresceu em um mundo de eterno presente e de grande oferta do legado histórico na forma de produtos culturais. O repertório musical de um jovem hoje reúne em mesmo lugar todo o patrimônio da música das últimas décadas, o que não quer dizer que saibam dos horizontes históricos em que as músicas foram produzidas ou que sejam capazes de usar esse repertório para pensar um futuro alternativo.
O senhor acha então que a utopia voltou às ruas?
A utopia, ao menos como a conhecemos nos tempos modernos, partia sempre de algum grau de certeza sobre as condições de previsibilidade do futuro. Isso era bastante visível na utopia socialista, que tinha uma teoria da sociedade, da economia e do real garantindo que a sua realização não só era possível como necessária. Se há vestígios de utopia, de projeto social, nas manifestações dos últimos dias, ela é bastante diferente de sua forma moderna, já que não é visível qualquer esforço para fundamentar um caminho de transformação. Antes de tudo vemos uma vontade de participação, de correção de injustiças, que é sempre um motor poderoso de mobilização, mas não uma vontade de mudança estruturada ou de ruptura das condições de reprodução do mundo atual. Muitos parecem desejar apenas esse mesmo mundo de forma mais eficiente e justa, o que tem certamente sua importância.
Se não é a utopia, o que move e mantém essas pessoas nas ruas?
Certamente essa pergunta não tem uma resposta única, as motivações são diversas e individuais, seria inútil tentar descrevê-las. Talvez possamos pensar sobre o que tem permitido o fenômeno que são as redes sociais. Um dos efeitos mais interessantes do Facebook é permitir a comunicação ampla para um grupo muito grande de pessoas que pensam de maneira semelhante a nós mesmos. Apesar da ilusão de comunicação ilimitada, o Facebook funciona em círculos progressivos de afinidade que se cruzam por suas margens. Geralmente falamos para os amigos mais próximos e, eventualmente, para os amigos dos amigos. Esse sistema em círculos que estão parcialmente conectados permite grandes zonas de consenso no grupo mais próximo e a diluição das diferenças na medida em que a informação flutua para as margens. O que quero dizer é que ele torna possível convocar milhares de pessoas sem que as diferenças de opiniões e avaliações se radicalizem a ponto de quebrar a unidade de ação. Essa estrutura da rede parece que se reproduz na própria manifestação, na medida em que, diferente dos comícios e passeatas organizadas, não há nenhum esforço para a veiculação de um discurso/voz que tivesse pretensão de representar as pessoas reunidas. As pessoas estão reunidas enquanto indivíduos ou grupos de afinidade, mas não no sentido político tradicional. Isso pode ser bom, mas não temos clareza de como potencializar seus aspectos positivos e diminuir os diversos usos oportunistas do fato, que rapidamente procuram significá-lo de acordo com suas agendas.
É natural que frente a eventos como esses haja uma expectativa de mudança, o que é visível no tema repetido por alguns de que o Brasil teria acordado. O Brasil acordou?
Parece ser um dos efeitos de nossa insatisfação com o congelamento do presente a vontade de identificar esses grandes acontecimentos marcantes. Queremos, como o historiador clássico, poder dividir o tempo entre um antes e um depois, em um esforço de renovar, reiniciar e ganhar novas energias. A sensação de viver em um eterno presente pode ser extremamente cansativa, basta olhar nossos velhinhos que não podem mais envelhecer e que precisam parecer jovens para sempre. É natural então que, principalmente na vivência do evento, enquanto as narrativas que tentam domesticá-lo ainda não foram acionadas, que tenhamos a sensação, quase física de uma renovação. Os grandes eventos ao vivo, partilhados globalmente em tempo real, têm sido uma fonte contínua dessa sensação. Infelizmente, dizer de sua importância e relevância “histórica” já não está mais ao nosso alcance. Como historiadores precisamos, mais do que narrar esses eventos, vivê-los intensamente, o que significa dizer vivê-los a partir da história viva, que sempre é maior que o nosso presente.
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