Janeiro/2020
“Entre nós, não se pode negar que temos uma epidemia. Prevenir a população seria o primeiro passo”. O alerta ecoa no plenário de uma das mais importantes entidades médicas do país, em São Paulo. “Devia-se nomear uma comissão de médicos da sociedade, encarregando-os da instrução do público, como também de fazer as propostas necessárias às autoridades competentes”, prossegue. Embora óbvia, a proposta encontra resistência. Enquanto médicos e governantes disputam sobre a causa e os tratamentos da doença, os óbitos se avolumam.
Parece o Brasil da Covid-19, com embates sobre uso de máscara e adoção de quarentenas, cloroquina, movimentos antivacina, em suma, um festival de negacionismos científicos. O episódio acima está muito distante dos dias atuais, mas só no tempo. Naquela sessão de 1º de fevereiro de 1897, na Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, defendia-se um diagnóstico baseado em estudos científicos, a partir da análise de sintomas, biópsias e culturas de bacilo de Eberth, realizada pelo cientista carioca Adolpho Lutz. Segundo ele, tratava-se de febre tifoide. Mas o endosso da entidade causou um racha entre os sócios.
Os membros que se contrapunham ao diagnóstico de febre tifoide defendiam que a doença de manifestações intestinais registrada em São Paulo era de natureza palustre, um tipo nativo ou local de malária, proveniente dos maus ares. Eram adeptos das teorias dos contágios e dos miasmas. Lutz, por sua vez, atestava, com base em estudos bacteriológicos rigorosos, que a patologia em questão era transmitida pela ingestão de água ou alimentos contaminados pelo bacilo de Eberth ou Salmonella typhi. Para evitar a infecção e mortes, era preciso, portanto, investir em medida de saúde pública, isolamento e tratamento.
Diante do rebuliço, decidiu-se votar, separadamente, cada um dos 12 pontos do parecer inicial da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo. Resultado? Um documento completamente diferente do original. Lutz não via sentido na celeuma e nem mesmo que fosse resolvido por voto algo que passara por numerosas evidências experimentais. O bacilo de Eberth fora descrito em 1880 pelo patologista Carl Joseph Eberth (1835-1926), descoberta confirmada pelo bacteriologista Robert Koch (1843-1910).
Diagnóstico errado, tratamento idem
Assim como se assiste hoje em relação à Covid-19, as opiniões divergentes sobre a epidemia de febre tifoide impactavam nas tomadas de decisão sobre as medidas corretas para evitar a propagação da doença, reduzindo, assim, o número de infectados e óbitos. Os médicos que atestavam ser a doença uma espécie de malária, lançavam mão da aplicação de quinina, inócua contra febre tifoide.
As contendas ocorridas em meados do século 19, no Brasil, no campo da saúde pública, guardam afinidade com os tempos do novo coronavírus e estão descritos em Adolpho Lutz: um esboço biográfico, do pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), Jaime L. Benchimol. No artigo, publicado na revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, o historiador resume momentos fundamentais da vida de um dos mais versáteis e prolíficos cientistas brasileiros, nascido há 165 anos, em 18 de dezembro de 1855. Ele ingressou no Instituto Oswaldo Cruz (IOC) em 1908, onde deu continuidade às suas pesquisas, até morrer, em 1940.
“Aquela foi uma época em que os temas palpitantes da saúde pública no país, que eram cólera, febre tifoide, febre amarela, estavam sujeitos a grandes controvérsias, que envolviam vários atores sociais: opinião pública, interesses políticos e econômico, médicos”, diz o historiador, destacando os prejuízos à população, assim como nos tempos atuais, de Covid-19, já que as controvérsias médicas e científicas envolviam políticas e ações profiláticas e preventivas muito diferentes”.
Os embates travados no período “são ótimos exemplos de doenças calcadas na observação dos fatos e no método rigoroso e politização das questões de saúde”, acrescenta o historiador, que, em parceria com a pesquisadora da COC/Fiocruz Magali Romero Sá, desenvolveu o projeto “Adolpho Lutz e a história da medicina tropical no Brasil”.
A iniciativa surgiu há 20 anos, quando Magali resgatou em um arquivo de metal esquecido no laboratório de herpetologia do Museu Nacional, material de pesquisa sobre Lutz, organizado pela bióloga Bertha Luz (1894-1976), filha do cientista. “Tudo foi incinerado com a queima do Museu Nacional, um evento muito simbólico do que ameaça a ciência brasileira hoje. Então, toda a documentação que a gente trabalhou não existe mais”, destaca Benchimol, sobre a tragédia ocorrida em 2018, quando a instituição completou 200 anos.
Magali e Benchimol realizaram um trabalho de resgate da obra de Luz que exigiu grande empenho, com traduções do vasto material, do alemão para o português. organizaram e editaram Adolpho Lutz – Obra completa, com 12 volumes, agraciado com o Prêmio Jabuti 2005 e lançado pela Editora Fiocruz, e criaram a biblioteca virtual, com apoio do Museu Nacional, Instituto Adolfo Lutz (São Paulo), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), além da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
Segundo Magali, Lutz achava desgastantes as controvérsias com médicos e grupos políticos. “Ele era uma pessoa da ciência, não gostava de se envolver nessas polêmicas. Mas havia o negacionismo, como agora. Tudo muito prejudicial porque, com isso, você atrasa a cura ou um melhor tratamento de uma determinada doença. A ciência tem que ser valorizada, está acima das disputas políticas, dessas lutas de poder. A gente vê muito isso hoje. Atrasa o desenvolvimento científico do país e é prejudicial à população”, avalia a historiadora.
‘O terreno ruidoso da ciência’
Naquela época, epidemias se alastravam no Rio e em outras cidades portuárias. A população crescera exponencialmente, e as péssimas condições de vida da população tornavam o cenário propício para a disseminação de doenças.
O país estava em ebulição: fim da escravidão, levas de imigrantes estrangeiros, instauração da República, industrialização, Revolta da Armada (1893-1894), Revolução Federalista (1893-1895), Revolta de Canudos (1896-1897). Para combater endemias e epidemias, se fazia necessário priorizar medidas sanitárias, que não necessariamente correspondiam aos interesses das oligarquias.
“A ciência personificada por Lutz e um grupo de pesquisadores navegava nessas águas revoltas, numa época de muita conflagração política, e tinha de estabelecer o norte correto das ações de saúde pública, enfrentando os jornais, as opiniões públicas colocadas de maneira violenta naquela conjuntura. Parece que a ciência que a gente defende é uma coisa homogênea, de fora do mundo. Na verdade, a história da ciência é uma história de constante de conflitos, de discussões de controvérsias. A ciência está sempre imersa no terreno ruidoso dos conflitos sociais”, observa Benchimol.
Com vasta experiência e contatos com a comunidade internacional, Lutz logo ocupou uma posição de destaque entre os bacteriologistas, área em ascensão, liderando um grupo mais jovem, que pasteurianos, que atuavam no Rio de Janeiro, como Oswaldo Cruz, Francisco Fajardo, Chapot Prévost e Benedito Ottoni.
“De pequenos laboratórios mantidos em residências particulares de um punhado de médicos versados na ciência de ver, testar, descrever e diferenciar microrganismos, saíram pareceres que repercutiram dentro e fora do país, fundamentaram ações onerosíssimas, atropelaram interesses poderosos e estilhaçaram o cotidiano de multidões”, escreve Benchimol.
Na direção do Instituto Bacteriológico, várias contendas
Quando ocorreu o embate sobre a febre tifoide, Lutz já assumira a direção do Instituto Bacteriológico de São Paulo, onde deu importantes contribuições sobre as doenças infecciosas que afetava o Estado e travou outros embates na área de saúde pública, sempre munido de vasta comprovação científica. À frente da instituição, sofreu agressões violentas na imprensa diária, procurando-se desacreditá-lo. Ingressara na instituição em 1893, onde se ocupava de investigar as causas das epidemias e endemias, exames diagnósticos e preparo de produtos necessários à vacinação.
Antes da disputa em relação à febre tifoide, Lutz já enfrentara embate quando o cólera se alastrou em localidades da capital e interior a partir da Hospedaria do Imigrantes, em 1893, e voltou a dar as caras de forma ainda mais insidiosa no Vale do Paraíba, em 1894 e 1895. O cientista carioca que já escrevera um importante artigo sobre a doenças intestinais, em 1891, atestava se tratar de cólera, diagnóstico verificado e confirmado no Rio, por Fajardo, Prévost, Cruz e Ottoni. Mas os laudos eram contestados por médicos que diziam se tratar de diarreias decorrentes de fatores telúricos e alimentares locais.
“Lutz tinha uma experiência fabulosa, tanto de formação, dos grandes centros, onde conheceu grandes bacteriologistas e parasitologistas, e conhecimento de vetores transmissores de doenças. Ele assume o Instituto de Bacteriologia e já pega uma epidemia de diarreia. Vai, então, defender que o cólera era causado por uma bactéria e isso gera uma grande disputa”, diz Magali.
E no meio disso, ainda existia outras contendas. “Havia um embate entre o grupo de médicos sanitaristas ou higienistas alinhados com a nova medicina pasteuriana e os que continuavam a interpretar os problemas de saúde à luz das antigas teorias miasmáticas. No caso do cólera, para os primeiros, a causa era o bacilo vírgula descoberto por Koch, o que requeria medidas drásticas de quarentena, isolamento dos doentes e desinfecções dos veículos do microrganismo, ao passo que para os médicos alinhados às teorias miasmáticas, eram diarreias provocadas por fatores telúricos e climáticos que não requeriam mais do que o tratamento dos doentes com os precários recursos terapêuticos então disponíveis”, detalha Benchimol.
Lutz também se envolveu em outra contenda em relação à febre amarela. Ele se contrapunha à teoria de transmissão por germes encontrados no ar. Assim como o vivenciado em relação à Covid-19, muitas dúvidas cercavam a origem e a transmissão da doença. Na virada do século, a novidade era um profilático. Enquanto as autoridades defendiam o soro curativo, o cientista carioca seguia direção contrária. Em 1897, Prudente de Morais informou ao Congresso Nacional que a Academia de Medicina, de forme unânime, solicitara ao governo o ensaio em larga escala do soro durante a próxima epidemia de febre amarela. Na mensagem, conta Benchimol, Nuno de Andrade, então diretor de Saúde Pública, endossava o soro: “Não é uma fantasia de descobridor visionário”.
Descobertas sobre a malária e os anos no IOC
Mas as verificações realizadas em laboratório por Lutz, Arthur Mendonça e Bonilha de Toledo refutavam os resultados do estudo clínico que indicava o uso do soro. Além disso, após inúmeras experiências, eles disseram ser impossível contrair a doença por meio de vômitos, fezes e urina dos infectados de febre amarela. A transmissão se daria por mosquito infectado. “Os maiores embates foram o cólera, a febre tifoide e a febre amarela e, por tabela, a malária”, diz o historiador, contando que Lutz descobriu um tipo de malária em zonas florestais de altitude completamente diferentes daquelas então associadas à doença. As bromélias, armazenadoras de água, seriam habitat do transmissor da malária silvestre.
Nascido no Rio, mas criado na Suíça, país natal de seus pais, Lutz voltou ao Brasil dos 26 anos. Fixou moradia em Limeira, no interior paulista, onde abriu um consultório para atender pessoas de baixa renda, em 1881, que manteve ativo até 1886, quando alçou outros voos, como os relatados acima. Com vasta atuação em clínica médica, epidemiologia, entomologia e parasitologia, veterinária, entre outras áreas, no Instituto Oswaldo Cruz, pode se dedicar mais à pesquisa e integrou as expedições realizadas por um grupo de sanitaristas da Fiocruz pelo interior do país, em campanhas contra doenças como a febre amarela, malária e pneumonia e a Doença de Chagas. “Era um cara singular no cenário científico brasileiro, fora do comum. Com uma versatilidade rara”, resume Benchimol.
Leia em HCS-Manguinhos:
Adolpho Lutz: um esboço biográfico. artigo de Jaime Larry Benchimol (vol.10, no.1, jan./apr. 2003)
Adolpho Lutz em Manguinhos: casos sérios e divertidos. Depoimentos e imagens (vol.10, no.1, jan./apr. 2003)
Recordações da infância: as primeiras letras com a família Lutz. Depoimentos e imagens (vol.10, no.1, jan./apr. 2003)
Bertha Lutz e a construção da memória de Adolpho Lutz, artigo de Jaime L. Benchimol, Magali Romero Sá, Márcio Magalhães de Andrade, Victor Leandro Chaves Gomes (vol.10, no.1, jan./apr. 2003)
Bertha Lutz na visão de um técnico aprendiz. Depoimentos e imagens (vol.10, no.1, jan./apr. 2003)
Os Lutz na visão dos contemporâneos. Depoimento de Esmeraldino de Souza (vol.10, no.1, jan./apr. 2003)
Coleção de simuliídeos (Diptera – Simuliidae) de Adolpho Lutz, sua história e importância, artigo de Ana Margarida Ribeiro do Amaral-Calvão e Marilza Maia-Herzog (vol.10, no.1, jan./apr. 2003)
Luta pela sobrevivência: a vida de um hanseniano através da correspondência com Adolpho Lutz, artigo de Jaime Larry Benchimol, Magali Romero Sá, Mônica de Souza Alves da Cruz e Márcio Magalhães de Andrade (vol.10, supl.1, 2003)
Adolpho Lutz e as controvérsias sobre a transmissão da lepra por mosquitos, artigo de Jaime Larry Benchimol e Magali Romero Sá, disponível em inglês (vol.10, supl.1, 2003)