Dezembro/2020
Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos
Desde o século XX, trocas científicas entre Brasil e Estados Unidos geram efeitos em diversos campos para os dois países. Hoje existe uma produção historiográfica considerável sobre o tema, porém dispersa. Percebendo essa lacuna, os pesquisadores Magali Romero Sá, Dominichi Miranda de Sá e André Felipe Cândido da Silva, da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, organizaram o livro As ciências na história das relações Brasil-EUA (Mauad Editora/Faperj), que será lançado hoje (17/12/20), às 14h, com uma live no Facebook. Eles concederam entrevista exclusiva ao Blog de HCS-Manguinhos.
O livro As ciências na história das relações Brasil-EUA enfoca o papel desempenhado pela ciência nas relações entre os dois países. Há um ineditismo nessa abordagem?
A temática da história das relações Brasil-EUA tem sido bastante trabalhada pela historiografia, mas ela se concentra nos aspectos políticos, econômicos e militares. Já existe um conjunto apreciável de trabalhos que examina as relações científicas entre os dois países, mas esta produção encontra-se dispersa em monografias e artigos. Uma coletânea que concentre trabalhos nesse sentido é inédita na historiografia brasileira. Também é inédita no que se refere ao tipo de abordagem das trocas científicas: enquadradas pela historiografia nos marcos do imperialismo, segundo os quais as iniciativas se relacionavam às ambições econômicas e de hegemonia política e cultural pelos EUA, a partir dos anos 1990 passaram a ser vistas como intercâmbios complexos, em que essas motivações estruturais continuaram presentes, mas interagiram em dinâmicas que envolveram interesses e engajamentos estratégicos das duas partes envolvidas, com tensões, acomodações e negociações. Os atores brasileiros que estabeleceram relações com os estadunidenses na maior parte dos casos fizeram uso estratégico das oportunidades abertas pelas ações de cooperação científica. Dessa forma, aproveitaram para avançar suas próprias agendas, o que gerou uma série de efeitos para as ciências, a política e a economia dos dois países.
Como surgiu a ideia de produzir um livro sobre o assunto?
O livro surgiu a partir de uma série de estudos que vínhamos realizando na Casa de Oswaldo Cruz sobre as relações científicas não só com os EUA, mas também com a França e Alemanha. Magali Romero Sá coordenou o projeto financiado pela Faperj pelo programa Cientista do Nosso Estado com o título “Ciência e Saúde nas relações científicas transnacionais: as relações Brasil-Estados Unidos e o programa de produção de alimentos para fins de economia de guerra”. Neste projeto, foram analisadas as redes de cooperação bilateral entre os dois países durante a Segunda Guerra em programas de pesquisa sobre peixes marinhos brasileiros de importância comercial.
Por meio de congressos e encontros informais com colegas e estudantes notamos que os trabalhos sobre tais relações estavam ganhando densidade, daí a ideia de reuni-los em uma coletânea como forma não só de dar visibilidade a essa temática, mas também de oferecer um panorama abrangente e heterogêneo dessas pesquisas.
Diversos temas e períodos são abordados nos artigos que compõem o livro. Quem ler a obra completa terá uma visão geral da história das relações científicas entre os países?
As relações científicas com os EUA no século XX envolveram as mais variadas disciplinas e temáticas. Foram decisivas para a institucionalização das ciências, para o desenvolvimento de campos de saber, surgimento de instituições e decolagem de carreiras individuais. Esta amplitude é difícil de contemplar em apenas uma coletânea, mas certamente o livro representa um conjunto bastante expressivo da diversidade dessas relações em termos de disciplinas, conjunturas, complexidade e impacto.
Ao longo da história, é possível identificar áreas da ciência ou épocas em que houve mais cooperação ou mais competição entre os dois países?
As áreas que predominaram nas relações entre Brasil-EUA variaram no decorrer do tempo. Nas primeiras décadas do XX houve um forte acento na cooperação em saúde pública, expresso pela presença da Fundação Rockefeller no Brasil. A partir dos anos 1930, essa mesma agência, que foi a ponta de lança das trocas científicas com a América Latina de uma forma geral, passou a privilegiar disciplinas mais acadêmicas e pesquisa que chamaríamos “básica”, em áreas como genética e física.
Que impactos tais relações tiveram em outros âmbitos, como o político, o econômico ou as áreas de saúde e ambiental?
Os impactos políticos, econômicos e ambientais foram diversos de acordo com os programas e as áreas envolvidas. As trocas científicas compuseram programas de cooperação intelectual referidos à diplomacia cultural, cujo saldo político e econômico é difícil de apreciar exatamente por serem na maior parte das vezes indiretos. Em linhas gerais, contribuíram para uma efetiva aproximação política e simpatia cultural entre as elites intelectuais brasileiras. Em algumas circunstâncias a importância desse alinhamento ficou clara, como nos anos da Segunda Guerra, em que os países do Eixo e os Aliados disputaram a neutralidade brasileira ou seu engajamento no confronto, mas que resultou, como sabemos, na entrada do Brasil em 1942 junto com os segundos. O mesmo ocorreu em momentos específicos da Guerra Fria, em que os esforços de cooperação científica não estiveram imunes ao enquadramento de indivíduos de esquerda, por vezes alijados por suas simpatias políticas. Isto não impediu que alguns desses segmentos avessos a essa aproximação com os EUA por razões ideológicas estabelecessem parceiras com estadunidenses, percorressem as instituições de lá para completarem seus estudos ou se beneficiassem de programas de bolsas de pesquisa. Em termos econômicos, várias tecnologias que contribuíram para maiores rendimentos na agricultura e na indústria surgiram desse diálogo bilateral. Em termos ambientais, o saldo foi paradoxal. A cooperação científica com os EUA foi muito produtiva em pesquisas sobre a ecologia brasileira, em estudos sobre a biodiversidade, os ecossistemas e em vínculos do movimento ambientalista, inclusive contribuindo para que algumas pautas importantes dos setores brasileiros ganhassem o cenário internacional, como o movimento de crítica à devastação da Amazônia. Por outro lado, esta cooperação contribuiu para a realização de atividades de caráter predatório, como a mineração e mesmo projetos centrados em um padrão industrial de agricultura, caracterizado pelo uso intensivo de fertilizantes químicos, maquinário e inseticidas, com as sérias consequências ecológicas que conhecemos.
Os artigos da coletânea são todos inéditos?
Nem todos. Alguns já haviam sido publicados em livros ou periódicos nacionais estrangeiros e foram traduzidos ou reimpressos. Mas a grande maioria é de capítulos originais.
Como os artigos foram selecionados?
Foram selecionados com base em temáticas e pesquisadores que já vinham se voltando para a análise das relações científicas entre Brasil e EUA. Procuramos contemplar a diversidade de áreas do saber que participaram dessas trocas, como também a diversidade de abordagens e de conjunturas analisadas. Há um viés nessa seleção, pois ela contempla em grande parte as redes de parceiros com quem estabelecemos contato direta ou indiretamente no decorrer desses anos, a partir de nossos próprios interesses de pesquisa e campos de atuação. Nesse sentido, temas concernentes à história da medicina, da saúde pública, das ciências da vida, das ciências agrárias e da história ambiental ganharam maior relevo. O desenvolvimento de estudos em outros campos científicos e o maior interesse que tem ocorrido na história dessas relações por parte dos estudantes e pesquisadores já daria para compor um outro volume.
Gostariam de destacar alguns artigos?
Muito embora a coletânea tenha uma organicidade conferida não só pela temática, mas também por uma forma mais ou menos comum de abordar a história das ciências, da medicina, da tecnologia e do ambiente, os capítulos são bem diversos e podem ser lidos de forma autônoma. Mobilizam acervos documentais do Brasil e do exterior e dialogam com a historiografia nacional e internacional, clássica e recente. Deixamos o destaque a cargo dos leitores, que certamente vão se interessar mais pelos temas com que tem afinidade ou que àqueles aos quais se dedicam em seus próprios estudos.
Como se caracterizam as relações científico-tecnológicas entre Brasil e EUA hoje? O que mudou ao longo do tempo?
Hoje em dia as relações científico-tecnológicas não só do Brasil com os EUA, mas também com os demais países, ocorrem em estruturas muito mais institucionalizadas e burocratizadas. As cooperações ocorrem a partir de parcerias mais formalizadas entre instituições e agências dos dois países. As agências de fomento à pesquisa científica no Brasil concentram e coordenam grande parte dessas iniciativas. Antes já havia um grau de institucionalidade, mas a informalidade era maior. A margem de manobra do Brasil nas negociações dessas parcerias também mudou. Hoje existe maior consciência e preocupação em contemplar e resguardar os interesses do país no que concerne a fatores como propriedade intelectual e patrimônio natural, por exemplo. A participação da sociedade civil e da comunidade científica é mais orgânica, deliberando de forma mais ativa as contrapartidas dessas relações para as instituições nacionais. A comunidade científica dos dois países é muito mais diversa, robusta e especializada. A complexificação de alguns programas de pesquisa, dependentes de equipamentos sofisticados e metodologias complexas, torna em alguns casos mandatória a cooperação internacional.
A comunidade acadêmica brasileira é muito mais internacionalizada do que antes e tem uma maior diversidade de parceiros estrangeiros comparado com o século XX.
Quem pode se interessar especialmente pelo livro e por quê?
Apesar do foco nas relações científicas entre Brasil-EUA, o livro estabelece interfaces com uma série de temas que estruturaram essas relações, como a história diplomática entre os dois países, o impacto da Segunda Guerra em diversos aspectos, a história econômica, cultural e política de uma forma geral. Em função disso, tem o potencial de despertar interesse entre os que se dedicam não só à história e às ciências sociais, como também aos estudiosos das relações internacionais, da saúde coletiva, das ciências ambientais e agrárias.
Participe do lançamento do livro no Facebook da COC nesta quinta-feira, 17/12, às 14h!