Dezembro/2020
Karine Rodrigues | Casa de Oswaldo Cruz
O Brasil ainda vivia o rescaldo do “milagre econômico” propagandeado pela ditadura militar quando, em agosto de 1974, cerca de 1.200 pesquisadores começaram a palmilhar o país com a missão de conhecer as condições de vida da população. Capitaneado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o estudo revelou que a euforia originada pelo crescimento recorde do Produto Interno Bruto (PIB), de até 11% ao ano, passava ao largo de grande parte dos lares brasileiros.
Inédito em dimensão, metodologia e relevância histórico-social, o Estudo Nacional da Despesa Familiar (Endef) foi o primeiro inquérito nacional com informações sobre o consumo alimentar e o estado nutricional dos brasileiros. As informações coletadas em 53.311 entrevistas, realizadas em domicílios situados em todo o território nacional, não foram nada alvissareiras.
Mais da metade das famílias (62,7%) possuíam deficiência calórica na alimentação, percentual muito semelhante ao dos que viviam com renda mensal de até dois salários-mínimos (62,4%). Além disso, 40% passavam por penúria alimentar, ou seja, quando a disponibilidade de alimento é insuficiente para atender às necessidades, numa condição permanente ou durante um tempo relativamente longo.
“Reverteu-se o entendimento ideológico de que o povo se alimentava mal por ignorância; os dados mostraram que o problema da fome no país estava ligado à péssima distribuição de renda. Essa situação se refletia na saúde da população, pois a mortalidade infantil que hoje está em menos de 13 por mil crianças nascidas vivas, na década de 1970 era de 115 por mil. E a expectativa de vida, que hoje está em 76,5 anos, era de 59 anos”, escreve a socióloga Cecília Minayo, pesquisadora emérita da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), no artigo Origem inusitada da pesquisa qualitativa em ciências sociais no Brasil. O estudo foi publicado recentemente na revista História, Ciências, Saúde-Manguinhos, da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).
“Morreu de inanição”
O Endef revelou que, no “Brasil do milagre”, morria-se de fome, como relata uma das supervisoras da pesquisa, Marlene Vaz. Ao acompanhar a entrevista de uma mãe com o filho ao colo, na Bahia, deparou-se com uma entre tantas situações extremas testemunhadas pelos agentes de campo.
“Não se via um bebê. Via-se [sic] apenas ossos, uma boca aberta chorando faminta e a mão da mãe, com aspecto de quem estava com peso abaixo da escala de subnutrição, segurando uma tigela pequena de esmalte danificado onde restava nas beiradas a sobra de uma papa de farinha de mandioca sem leite, que fora consumida pela manhã”, diz o trecho reproduzido por Minayo no artigo. […]. Segundo o relato, o bebê parou de respirar durante a entrevista: “Corremos ao posto de saúde, eu com ele nos braços, pois a mãe nem tinha forças para correr. Ao ser examinado, o médico comunicou: morreu de inanição”.
Uma das principais estudiosas da área de pesquisas qualitativas no país, fundadora do Centro Latino-Amercano de Estudos de Violência em Saúde Jorge Careli (Claves), na Fiocruz, Minayo resolveu rebobinar a história da metodologia e encontrou em sua origem, curiosamente, o IBGE, onde reinavam as estatísticas.
A pesquisadora detalha, no artigo, os bastidores do Endef, coordenado pelo sociólogo Luiz Affonso Parga Nina, com quem Minayo viria a trabalhar na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) nos anos 1990.
A ideia de escrever o artigo foi dar visibilidade a um tema que, segundo Minayo, a maioria das pessoas desconhece, mesmo dentro da academia, e homenagear Parga Nina. O desconhecimento, diz, teria sido motivado pelo “tamponamento da realidade por parte da ditatura militar” e por um “boicote” dentro do próprio IBGE aos chamados dados não estruturados, terminologia criada pelo instituto para se referir aos dados qualitativos.
A importância do contexto nas estatísticas populacionais
Apesar das visões discordantes, o estudo foi adiante porque o então presidente do IBGE, o economista e especialista em planejamento Isaac Kerstenetzky considerava que as estatísticas populacionais deveriam ser teoricamente fundamentadas e contextualizadas, observa Minayo, que o considerava um humanista, “para quem o fenômeno econômico não pode ser jamais entendido se as questões sociais e ambientais que o implicam não forem compreendidas”.
Assim como ele, Parga Nina entendia que o método qualitativo traria informações adicionais para a pesquisa social captar um retrato mais profundo da realidade, porque baseado no trabalho empírico e intersubjetivo, possibilitando uma tomada de decisão mais eficaz no planejamento das políticas públicas. A inovação metodológica fora motivada pelo entendimento de que o fenômeno social precisa ser analisado para além das estatísticas.
A pesquisa de campo do Endef se estendeu por um ano, durante o qual os entrevistadores aplicaram um questionário padrão constituído por 25 temas nos quais se destrinchava o orçamento familiar. Deu-se aos hábitos alimentares atenção destacada: importava saber os detalhes do cardápio, o peso e o valor nutricional de cada item, além dos custos da alimentação. Gastos com vestuário, medicamentos, assistência média, serviços domésticos, entre outros, eram descritos e quantificados.
Durante sete dias consecutivos, o agente de campo realizava três a quatro visitas diárias, para acompanhar cada uma das refeições da família. Além do poder de convencimento – necessário para que os moradores acolhessem um estranho em sua casa durante uma semana com uma saraivada de perguntas –, eram imprescindíveis duas fitas métricas e duas balanças: uma para pesar os alimentos e outra para pesar cada membro da família entrevistada.
Alimentação, categoria de análise fundamental
Mas por que a alimentação recebera atenção especial no Endef? É porque se trata de uma categoria de análise que, segundo Minayo, é fundamental para se conhecer os padrões de vida de um povo. Em geral, a alimentação se associa ao tipo de trabalho exercido e à condição de vida. “Falar de alimentação é falar do coração do país”, observa a socióloga.
O Endef usou uma abordagem triangulada de métodos quantitativo, considerados hegemônico, e qualitativo, explica a socióloga. Nesse último caso, o IBGE adotou a observação participante e os relatos dos agentes de campo escritos em uma folha anexa ao fim do questionário que constituía o caderno de pesquisa.
Ideia de Parga Nina, o espaço intitulado “Observações sobre a unidade pesquisada” foi reservado para que os pesquisadores, voluntariamente, narrassem sua experiência subjetiva após a convivência de uma semana com cada família. O objetivo era que a folha fosse destinada a esclarecer pontos do questionário.
“A expectativa de Parga Nina era de que articulação entre dados objetivos e subjetivos que traduzissem o modo de vida dos brasileiros iluminasse os caminhos adequados para o planejamento dos governos. Ele entendeu que as duas informações eram relevantes para o planejamento e a ação”, escreve Minayo, para quem a pesquisa também foi importante por mostrar que a fome não estava restrita ao Nordeste.
Ao analisar os relatos escritos durante os primeiros meses da pesquisa de campo, os envolvidos na aplicação e coordenação do estudo perceberam que as situações descritas escancaravam a desigualdade no país. Estavam diante de um material valioso que não poderia ser desconsiderado na análise.
“Isso começou a acender uma luz para os pesquisadores como um todo e, particularmente, para Parga Nina, que tinha um grupo pequeno, mas fiel, sobre a importância dos métodos qualitativos. Eles começaram a ver: ‘Estamos com uma riqueza na mão. Vamos deixar para lá?’”, conta a socióloga. A folha acabou se tornando uma fonte de informações qualitativas e dando significados adicionais aos dados estatísticos.
Abordagem qualitativa sofria resistência até dentro do IBGE
Os depoimentos eram, de fato, alarmantes. “É o caso dos dados que mostravam que em certos lugares havia boias-frias que comiam folhas do cafezal; famílias que ingeriam apenas casca de batata cozida, lixo, rato, carvão, sabão, miolo de xaxim, lavagem de porco e minhocas”, escreve Minayo no artigo.
Para classificar as diferentes condições de pobreza a partir dos depoimentos dados voluntariamente pelos pesquisadores, Parga Nina e seu grupo utilizaram a técnica de análise de conteúdo, aprofundando categorias que surgiram da fala da população ou dos pesquisadores de campo: alimentação, saúde e higiene, educação e cultura e atividades econômicas.
Os resultados do estudo não foram bem recebidos. Nem pelo governo, que fazia de tudo para se legitimar no poder por meio de uma imagem positiva do “milagre econômico” e nem mesmo por grupos que torciam o nariz para a abordagem qualitativa, dentro e fora do IBGE.
“Nem os altos escalões dos ministérios, nem a imprensa, nem a sociedade souberam do módulo qualitativo da pesquisa. Da parte concluída, foram feitas apenas 220 cópias para ‘uso restrito’. Em 1978, o grupo do Endef como um todo foi desmontado”, escreve Minayo, contando que 11 anos depois os resultados da pesquisa foram descobertos pela revista Isto É, referindo-se à reportagem que, segundo ela, não fez jus à importância do papel do IBGE no episódio.
Parga Nina acabou se desligando do IBGE, assim como Kerstenetzky. Ambos foram para a PUC-Rio, onde iniciaram um estudo para investigar as configurações da pobreza, de dimensão reduzida, restrito ao Rio, e com o mesmo espírito do Endef. “Mas também não foi muito reconhecido”, diz Minayo, que participou da pesquisa, não concluída.
Segundo ela, a crítica à pesquisa qualitativa ainda se mantém, em especial, nas áreas mais duras. “Eles não toleram pensar que você possa trabalhar com a subjetividade, entendeu?” Quem não entendeu foram eles.
Fonte: Casa de Oswaldo Cruz
Leia em HCS-Manguinhos:
Origem inusitada da pesquisa qualitativa em ciências sociais no Brasil, artigo de Maria Cecilia Minayo (v. 27, n. 3, jul/set 2020)