Agosto/2020
Anny Jackeline Torres Silveira *
“Quanto mais o isolamento social funcionar, mais ele vai parecer desnecessário”.[1]
Foi ainda nas primeiras semanas da ‘quarentena” que essa frase surgiu entre uma profusão de notícias que circulavam pelas as redes sociais. Em meados de março, várias capitais brasileiras estabeleceram regulamentos para a restrição do contato social a fim de controlar a propagação da doença e muitos brasileiros atenderam às disposições das autoridades de saúde. O percurso da doença nessas cidades, como se viu, seguiu caminhos diferentes, resultado de um amplo conjunto de variáveis.
Se a experiência de uma pandemia em lugares diversos tem pontos de contato – as mazelas das desigualdades sociais, a exacerbação dos índices e as dificuldades no âmbito do sistema público de saúde, as resistências de ordem econômica – também tem suas especificidades. A proposta deste texto é apresentar, de forma breve, como tem sido a trajetória da pandemia de Covid-19 em Belo Horizonte, elencando algumas questões sobre a atuação das autoridades e as respostas sociais, e estabelecendo um diálogo com a experiência da pandemia de influenza ocorrida há um século.
Uma pesquisa sobre os dados oficiais referentes à evolução da Covid-19 em Belo Horizonte aponta um relativo sucesso das medidas implementadas pela prefeitura até o mês de junho. Entre 20 de março e 9 de abril, a capital mineira transitou da proibição de funcionamento de espaços e práticas que favorecessem à aglomeração de pessoas à suspensão de todas as atividades consideradas não essenciais. A adesão a essas medidas refletia o temor diante do rápido crescimento que notificações e casos suspeitos que foram verificados em algumas regiões brasileiras entre 26 de fevereiro até o dia 16 de março – datas que marcam o registro oficial da primeira notificação e do primeiro óbito devidos à doença. Outros argumentos de força no convencimento da população o afastamento social foram, sem dúvida, a crônica diária de noticias, imagens e estatísticas impressionantes divulgada pela mídia sobre a expansão da pandemia pela Itália, que no ultimo terço de março se aproximava do índice de 900 mortes diárias, cenário que se repetia na Espanha no mês de abril.
Na capital mineira, a primeira notificação ocorreu no dia 16 de março. Dois dias depois, a prefeitura decretava o fechamento do comércio. Em outros dois dias, a imprensa mineira registrava que a circulação de carros e pedestres na Praça Sete, ponto central da cidade, tinha diminuído em torno de 50 e 70% respectivamente. As projeções feitas a partir da adesão da população de Belo Horizonte ao isolamento, verificada no último terço de março, davam conta de que seu impacto na redução dos índices de internação e óbitos na capital pudesse chegar a algo em torno de 70 e 80%.[2] Dali até meados de maio as estatísticas apontavam que a doença seguia sob controle. Naquela altura, a pandemia avançava com drásticas estatísticas no Rio de Janeiro, São Paulo, Amazonas, Pará e Ceará. Por outro lado, Minas e os estados da região sul pareciam trilhar caminho diferente.[3] O comportamento da doença nessas regiões era então associado, entre outras variáveis, ao fato de serem locais nos quais a decisão em favor do distanciamento social ter sido tomada com rapidez e sua observação por parte da população ter alcançado níveis relativamente satisfatórios.
As críticas contra as medidas de suspensão de atividades comerciais cresceram a partir do final de abril e, apesar da resistência anteposta às pressões do setor econômico, em 25 de maio a administração municipal deu início à implementação de um plano de reabertura gradual da economia.[4] Essas pressões se beneficiaram das posições defendidas por outras esferas políticas e pelo movimento de várias prefeituras, inclusive aquelas da região metropolitana, na liberação de atividades comerciais. Não é preciso lembrar que a dissonância de posições em outras esferas de poder quanto ao isolamento vinha desde março, quando a pandemia foi taxada de “gripezinha” pelo presidente. No início de abril o governador mineiro fazia coro aos críticos do isolamento, afirmando que “nessa crise, só precisamos que o vírus viaje um pouco”.[5] A sugestão apontava na direção de uma percepção largamente contestada pelas autoridades em saúde, de estímulo ao avanço da doença visando alcançar maior imunidade da população, no intuito de favorecer a retomada das atividades econômicas mais rapidamente.
A justificativa para uma revisão do isolamento social esteve fortemente ancorada na fragilidade econômica e social que a situação impunha aos trabalhadores e pequenos proprietários. Paralelo a ela, estava a percepção de que a pandemia não avançava de forma avassaladora, levando a uma equivocada sensação de segurança. As explicações sobre o comportamento social diante de uma epidemia são bastante complexas, e no caso da Covid-19 vão mobilizar argumentos e abordagens variados e, certamente, sugerir diferentes alternativas explicativas. Uma delas, especialmente onde o isolamento social parecia surtir efeito, certamente será o arrefecimento do temor à doença à medida que ela parecia não avançar de forma avassaladora. Uma noção então reforçada pela mídia e as autoridades de saúde apontava que o distanciamento era uma medida para garantir aos possíveis doentes uma chance maior de atendimento e, portanto, de sobrevivência aos doentes. Para isso era necessário abaixar a curva de contaminação. Quanto mais o pico da pandemia fosse empurrado adiante, mais se afastava a previsão de colapso do sistema de saúde e cresciam as possibilidades de salvar mais vidas – “flattening the curve” e “fique em casa se puder”, se tornaram mantras da pandemia. Porém, para parte da população pareceu predominar a idéia de que o isolamento levaria necessariamente à eliminação da doença. Além disso, a postergação de um pico que nunca chegava também pareceu levar o perigo da doença ao descrédito social. Se não tem colapso, está tudo sob controle e não é preciso isolamento. E na verdade o colapso ainda não tinha se instaurado exatamente por causa do isolamento.
A chegada de junho se fez com um movimento de retração no plano de reabertura, diante da sinalização do aumento de casos em Belo Horizonte. Crescimento que também havia sido registrado nos dados referentes ao estado de Minas, cujos baixos índices de notificação da doença eram então associados à quase ausência de testagem da população. O recuo feito pela administração municipal não pareceu reverberar qualquer movimento no sentido de um reforço das ações de distanciamento entre a população. A imagem das ruas e os relatos pelas redes sociais desde maio davam conta do aumento crescente da movimentação urbana. A população parece cada vez menos disposta a manter as restrições e encenar um drama no qual o ápice parece nunca chegar. A não ser pela presença das máscaras, que um número significativo de pessoas se nega usar, o movimento urbano não parece indicar que estamos em meio à crise, e pelo que sugerem os dados, no seu pico. Junho e julho tem sido meses de agravamento dos índices de risco, medidos pela percentagem da ocupação de leitos de enfermaria e UTI, e também pelo fator Rt, que reflete o índice de contágio. Em meados de julho, Belo Horizonte rompeu a marca de 300 mortos pela Covid-19. Os casos subiram a mais de 13.500, e a ocupação dos leitos de enfermaria e UTI atingiram índices de 75 e 88%.[6] No dia 15 de julho o governador declarou que a pandemia em Minas não seguiria um gráfico em triângulo, indicando o recuo das notificações e mortes após o pico epidêmico, mas que o estado havia atingido um platô, no qual deveria permanecer “por dias, quiçá por meses”.[7]
Na pandemia de 1918 também não houve medida das autoridades que antecedesse a notificação dos primeiros casos, ainda que informações circuladas pelos jornais descrevessem o impacto da doença em outros países e capitais brasileiras. Como hoje, escolas e atividades coletivas foram suspensas, mas o comércio e as repartições públicas só deixaram de funcionar porque os trabalhadores adoeceram ou pela quase ausência de clientes, imobilizados pelo medo ou pela preservação da vida. A maior parte das autoridades estava convencida da impossibilidade de fazer frente à doença e suas ações pareciam ter mais o sentido de aplacar a ansiedade popular do que de crença na efetividade da ciência ou das medidas sugeridas. No campo da assistência, a atuação foi sempre reativa: as medidas tomadas visavam apenas mitigar os horrores da pandemia, como era de hábito nas experiências epidêmicas da época. Não havia no horizonte, nem em 1918 e mesmo por bastante tempo depois, a idéia de que, apesar da grande dificuldade de se antepor à difusão de uma epidemia, é possível aplacar seu impacto evitando que a taxa de contaminação inviabilize o acesso dos doentes ao socorro médico. Naquela época também houve contestação à suspensão das atividades coletivas, justificada pela necessidade de levar um pouco de relaxamento ao espírito e pelas questões econômicas, mas devidamente confrontada pela opinião pública em favor do interesse coletivo. A doença veio como avalanche, um tsunami que, ao contrário do que os números oficiais pudessem sugerir, fez grande estrago naquela cidade de cerca de 50 mil habitantes. E para suprir a incapacidade de resposta do poder oficial e a ausência de serviços públicos de saúde, o socorro veio pela solidariedade. Foi a mobilização social que garantiu o suporte para que a população atravessasse aquela quadra pandêmica, Aliás, assim também havia sido em outras grandes epidemias do passado.[8]
Saber como a doença vai se comportar, o que nos espera no futuro é algo difícil de responder. Estamos diante de uma doença nova, sem padrão comparativo. Os eventos provocados por outros vírus semelhantes foram abortados antes de alcançarem essa dimensão – como a SARS ou a MERS. As modelagens científicas muitas vezes encontram cenários que não cabem nas suas variáveis. A realidade do país é complexa, assim também dos estados, das capitais, do interior e das próprias cidades. Não há bola de cristal capaz de predizer o amanhã e a novas facetas sobre os impactos do vírus no organismo ampliam as possibilidades daquilo que será necessário considerar para se contar vítimas e as experiências e conseqüências desses dias. A ciência tem dado respostas rápidas e bem mais efetivas que aquelas que pode oferecer em 1918. Mas as dissonâncias políticas e sociais hoje parecem maiores, e está claro o quanto elas podem influir e impactar no curso das doenças.
*Anny Jackeline Torres Silveira é professora associada da Universidade Federal de Ouro Preto e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais.
Referências:
[1] Portal Gauchazh, 14/04/2020. Disponível em https://gauchazh.clicrbs.com.br/saude/noticia/2020/04/quanto-mais-o-isolamento-social-parecer-desnecessario-mais-efetivo-ele-esta-sendo-diz-medico-gaucho-que-mora-nos-eua-ck8zxv3yu02uk01nt3u7ibo1r.html. Acesso em 10/07/2020
[2] Jornal Estado de Minas, dia 22/03/2020. Disponível em https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/03/22/interna_gerais,1131286/coronavirus-quarentena-em-bh-tem-intensidade-que-pode-reduzir-mortes.shtml. Acesso em 14/07/2020
[3] Portal Gauchazh, 23/04/2020. Disponível em https://gauchazh.clicrbs.com.br/coronavirus-servico/noticia/2020/04/porto-alegre-esta-entre-as-10-capitais-com-menor-incidencia-de-coronavirus-ck9d28nbn00g0017nj0a3kpul.html. Acesso em 14/07/2020
[4] Portal Estadão, 29/04/2020. Disponível em https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,prefeito-de-bh-reclama-da-pressao-para-reabrir-comercio-nao-fui-eleito-por-meia-duzia-de-empresas,70003287120
https://prefeitura.pbh.gov.br/noticias/prefeitura-anuncia-retomada-gradual-do-comercio-em-belo-horizonte. Acesso em 12/07/2020
[5] Portal UOL, 11/04/2020. Disponível em https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/04/11/zema-critica-prefeitos-e-diz-que-coronavirus-tem-que-viajar-um-pouco.htm Acesso em 14/07/2020.
[6] Jornal Estado de Minas, 17/07/2020. Disponível em https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/07/17/interna_gerais,1167950/ocupacao-da-uti-para-covid-19-volta-a-subir-em-bh-e-chega-perto-dos-90.shtml. Acesso em 17/07/2020.
[7]Jornal Estado de Minas, 15/07/2020. Disponível em https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2020/07/15/interna_gerais,1167197/zema-ve-estabilidade-de-casos-em-mg-vamos-ficar-em-cima-da-montanha.shtml. Acesso em 17/07/2020
[8] Silveira, Anny J.T. A Influenza Espahola em uma capital planejada – Belo Horizonte, 1918. Belo Horizonte, Argvmentvm, 2007.
Como citar este post:
SILVEIRA, Anny Jackeline Torres. “Quanto mais o isolamento social funcionar, mais parecerá desnecessário”. Blog de HCS-Manguinhos. Publicado em 02 de agosto, 2020. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/quanto-mais-o-isolamento-social-funcionar-mais-parecera-desnecessario
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