Junho/2020
Carlos Henrique Assunção Paiva, Luiz Antônio da Silva Teixeira e Fernando A. Pires-Alves*
Epidemias são eventos trágicos. A redução de seus efeitos, sobretudo coletivos, é a grande preocupação das sociedades, e seu enfrentamento mobiliza muitos atores sociais, instituições, públicas e privadas, profissionais e tecnologias sociais. O sucesso no confronto tem relação com a gravidade da situação social e sanitária, mas também com a capacidade de os governos mobilizarem comunidades e instituições de maneira articulada. A tarefa, entre outras coisas, exige coerência e articulação ao enfrentamento do problema.
Nas últimas décadas a globalização da nossa sociedade transformou a saúde em um território sem fronteiras. A saúde global pode ser vista como uma resposta a eventos novos como epidemias. Mas as medidas em caráter global só costumam ser implementadas quando ameaçam atingir também os países ricos. Como é sabido, desde os anos 1980, as epidemias de dengue vêm vicejando nos países do sul tropical sem se apresentarem como uma prioridade para os interesses da governança da saúde global. A emergência do Zika Vírus e a possibilidade de ele gerar microcefalia e outros problemas neurológicos, em âmbito mundial, transformou a doença em uma emergência global. No entanto, a limitação da microcefalia a regiões específicas do país muito rapidamente determinou a forte diminuição dos financiamentos para a pesquisa. Ao mesmo tempo, os governos pouco fazem pelas mães e suas crianças com microcefalia.
À luz de nossa experiência histórica, o que poderíamos considerar, hoje, em termos de construção de uma resposta organizada, para o enfrentamento da epidemia de Covid-19? A existência de um sistema de saúde público e universal, organizado nacionalmente em rede e baseado numa visão ampla da saúde como bem-estar, constitui-se na resposta organizada mais potente que podemos mobilizar nesse momento.
A ideia de se implantar políticas de saúde extensivas, organizadas e abrangentes ganhou força no final da ditadura, a partir da incorporação de visões mais amplas sobre saúde como direito. Nesse contexto abria-se a possibilidade de instituir políticas públicas que romperiam com uma lógica restritiva e setorial acerca das políticas sociais brasileiras, rumo a perspectivas, senão idênticas, então próximas à do estado de bem-estar social europeu.
A dura realidade brasileira, que combinava restrições na capacidade de financiamento do Estado e a emergência do neoliberalismo como receituário para enfrentamento da crise econômica, impôs profundas restrições para a implantação integral das ideias para saúde e seguridade social, acima mencionadas, e que deram base à Reforma Sanitária. Em meio à crise econômica do governo Sarney e dos que o sucederam, desfazia-se o otimismo de uma rápida e radical transformação do sistema de saúde, recém expresso na carta constitucional de 1988. Às dificuldades em colocar em prática ações transformadoras, que entravam em choque com interesses econômicos de grupos altamente organizados, somava-se a complexidade do desafio representado pela implementação de um sistema único de saúde em um país com grandes disparidades regionais.
Nos anos 1990 a concretização dos princípios de equidade, integralidade e universalidade, que definiram o SUS, foi a fonte de tensões contínuas em um momento em que a concepção de Estado mínimo, ditada pelo neoliberalismo em ascensão na Europa e nos EUA, propunha restringir a ação do Estado na regulação da vida social. A onda conservadora de reformas no plano político, econômico e social, fortemente orientadas para a redução do tamanho e da capacidade do Estado, limitou a possibilidade de estabelecimento de um sistema nos marcos daquele que foi concebido pelo movimento da reforma sanitária.
A Covid-19 faz emergir, agora, de forma muito contundente, o tema do SUS e da sua implementação real e completa como sistema de fato integral e para todos. Afinal, as crises epidêmicas não pararam e tudo leva a crer que jamais pararão. Epidemias, de uma forma sempre muito dramática, testam as capacidades dos sistemas de saúde e levam à avaliação de suas capacidades. À esta altura dos acontecimentos, já sabemos que não temos leitos suficientes, profissionais disponíveis e infraestrutura necessárias. Tudo indica que também não temos ou teremos esses elementos ou uma desejada capacidade de criá-los de forma eficiente em um momento de crise tão aguda. Mesmo os sistemas de saúde mais modelares, como os europeus, estão enfrentando problemas importantes na condução da situação sanitária, no combate, controle e tratamento da Covid-19. O problema se concentra, nestas situações dramáticas, na capacidade de organizar a melhor e pronta resposta.
Essa crise traz à luz a necessidade de um ambiente favorável para o desenvolvimento de um sistema público de saúde efetivo. Para tanto, são necessárias a ampliação dos investimentos, a valorização das instituições de saúde e a independência técnica por parte das autoridades sanitárias. Enfim, condições institucionais, econômicas e políticas para responder com velocidade a um quadro sanitário tão agudo. Ciclos de novos vírus emergirão sem ou com maiores implicações coletivas. A questão que se coloca é: temos aprendido a lidar com esses ciclos?
* Pesquisadores do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz
Fonte: Especial Covid-19: o olhar dos historiadores da Fiocruz, do site da Casa de Oswaldo Cruz.
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