Vanderlei Sebastião de Souza *
Não há dúvida que a pandemia do novo coronavírus ficará registrada nos livros de história e na memória coletiva como um evento paradigmático que afetará profundamente o século XXI. Além de sua alta letalidade, nenhuma outra pandemia se caracterizou ao longo da história por formas de contágio e disseminação tão aceleradas quanto a Covid-19. A velocidade com que a pandemia tem se espalhado pelo mundo é tão rápida que governos, sociedade e o mercado tem entrado em pânico jamais imaginado. Como forma de salvação, Estados e organizações governamentais do mundo todo tem desesperadamente buscado respostas na comunidade científica, seja para compreender a forma de ação e propagação do novo vírus, seja na expectativa de enfrentá-lo a partir da produção de novos exames, tratamentos e vacinas. Mesmo em países como o Brasil, cujo governo tem seguido a cartilha neoliberal e negligenciado investimentos em pesquisa científica, as autoridades públicas têm exigido o socorro da ciência, como um fio de esperança diante de uma catástrofe nacional.
Neste cenário, a pandemia tem colocado em evidência não apenas a centralidade da ciência na produção de bem-estar social, como a necessidade dos Estados e das instituições públicas e privadas ampliarem o financiamento da pesquisa científica e da formação de profissionais capacitados para lidar com eventos tão emblemáticos. Sabemos que a valorização da ciência significa, antes de tudo, um amplo investimento em educação de qualidade e formação de sólidas instituições de pesquisa. Em países como o Brasil, que concentra sua produção científica em pesquisas realizadas no interior das universidades públicas, a pandemia da Covid-19 surge como uma oportunidade sem igual para refletir sobre a relação da sociedade e Estado com a ciência, a educação e as instituições públicas de ensino e pesquisa.
Um bom exemplo para analisar essas relações é o caso do estado do Paraná, que além da existência das universidades públicas federais (UFPR, Unila, UFFS, UTFPR), possui um conjunto de sete universidades públicas estaduais espalhadas em diferentes cidades do interior do estado[i]. Juntas, essas universidades estaduais formam um polo de conhecimento fundamental para o desenvolvimento humano, científico e econômico da sociedade paranaense. Em tempos de pandemia, essas universidades têm cumprido um papel decisivo no enfrentamento da Covid-19 e da crise social e econômica que se instalou no Estado, contribuindo tanto para realização de pesquisas, formação de profissionais e nas orientações cientificamente embasadas para autoridades tomadoras de decisões, seja na realização de atividades extensionistas, fundamentais no atendimento à sociedade.
Neste sentido, os hospitais universitários do Paraná têm preparado sua estrutura para atender pacientes infectados, num esforço que vem reunido pesquisadores, médicos, enfermeiros, profissionais de saúde e estudantes ligados às universidades estaduais. Ao mesmo tempo, laboratórios e pesquisadores dessas instituições têm sido credenciados para realizar pesquisas, desenvolver técnicas e analisar exames de identificação da Covid-19. Grupos de pesquisas e discussões sobre a pandemia vêm se formando a partir da iniciativa de pesquisadores e professores universitários, alguns com destaque nacional, conforme têm apontado os dados da Web Of Science, divulgados pela Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (Fapesp), que colocou a Universidade Estadual de Londrina (UEL) entre as três universidades com o maior número de publicações sobre o coronavírus do Brasil. Além disso, deve-se destacar o papel que as universidades estaduais historicamente desempenham na formação de profissionais que atuam em hospitais públicos e privados, nas unidades de saúde e em secretarias de diferentes órgãos da gestão pública, fundamentais para o enfrentamento da pandemia.
A despeito da contribuição pública das universidades estaduais, nos últimos anos os cortes nos recursos destinados à pesquisa científica e à manutenção das Instituições de Ensino Superior tem afetado profundamente a comunidade científica e acadêmica. Não bastasse o desmantelamento financeiro, as universidades estaduais têm sofridos duros ataques de setores neoliberais e antidemocráticos, numa clara ofensiva contra a educação pública, a produção de conhecimento, os professores, pesquisadores e intelectuais ligados a estas instituições, situação que também vem se repetido em relação às universidades federais e à produção científica de todo país. Além disso, as instituições de ensino e pesquisa também tem assistido ao crescimento do negacionismo, movimento que recusa o conhecimento científico e as evidências racionais em nome de ideologias obscuras, autoritárias e sectárias. Em tempos de pandemias, um dos fenômenos mais graves do negacionismo é, por exemplo, o questionamento sobre a eficácia das vacinas, das pesquisas científicas e das orientações cientificamente embasadas. Deve-se destacar que o próprio ataque às orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e o desrespeito às medidas de distanciamento social são também efeitos desse mesmo movimento ideológico.
No caso do Paraná, o negacionismo da ciência tem se juntado aos interesses do mercado e produzido um violento discurso de oposição às medidas de isolamento social e de relativismo sobre os efeitos da pandemia. Desde que o governo estadual e as autoridades municipais decretaram a quarentena e o fechamento do comércio não emergencial, várias cidades do Estado têm realizado carreatas e manifestações pressionando as autoridades locais pela reabertura do setor comercial e retomada da circulação de pessoas. Embora o Paraná seja, entre os estados do sul do Brasil, o que vem apresentando a maior notificação de casos de contágio e morte pela Covid-19, as autoridades estaduais e municipais vêm liberando as atividades comerciais e o isolamento social, atendendo a pressão de empresários, associações comerciais e industriais e setores mais sectários da sociedade. A despeito do aparecimento diário de novos casos da Covid-19, em muitas cidades o afrouxamento da quarentena tem sido tratado com naturalidade, quando não celebrado com novas carreatas, algumas delas animadas pelo apoio à intervenção militar e ataque às instituições democráticas.
É preciso ressaltar que o relativo controle sobre a propagação da pandemia no Paraná está justamente relacionado, conforme apontam os dados estatísticos e epidemiológicos, ao empenho inicial do estado e da sociedade na aplicação de medidas emergenciais de distanciamento social, sobretudo nas primeiras semanas de identificação da pandemia. Contudo, com o negacionismo em torno dos efeitos da pandemia e o consequente afrouxamento da quarentena, o cenário para os próximos meses é incerto. A própria Secretaria de Saúde do Estado tem afirmado, em sintonia com as previsões de pesquisadores e profissionais da saúde, que o pico da pandemia no Paraná deve ocorrer entre maio e julho, o que irá coincidir com outras síndromes respiratórias que comumente ocorrem em todo sul do país, relacionadas à chegada do inverno. Neste caso, mais do que nunca, a sociedade paranaense precisará de toda estrutura do sistema público de saúde e apoio da ciência, das universidades e do empenho de pesquisadores, estudantes voluntários e de todos os profissionais da saúde dedicados ao serviço público e à assistência social.
Neste cenário, é possível imaginar, de maneira otimista e sensata, que a pandemia possa promover uma ampla reflexão sobre a relação da sociedade com a ciência, a educação e as universidades públicas. Isso não apenas estimularia novos investimentos em ciência como permitiria que a sociedade se relacionasse diferentemente com as orientações e determinações pautadas pelo conhecimento científico, fundamental no processo de organização e transformação do mundo. Ao mesmo tempo, o estabelecimento saudável e democrático dessa relação também permitiria que as demandas sociais por ciência fossem realizadas de acordo com os interesses públicos e coletivos. Não há dúvida que a transformação da sociedade e o estabelecimento de relações mais solidárias e coletivas passam necessariamente pela valorização da educação, ciência e cultura, contribuições que as universidades públicas sempre desejaram oferecer.
*Historiador, Professor Adjunto da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro-PR)
[i] Compõem as sete universidade públicas do estado do Paraná: Universidade Estadual de Maringá (UEM); Universidade Estadual de Londrina (UEL); Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG); Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste); Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro); Universidade Estadual do Paraná (Unespar); Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp).
Como citar:
Souza, Vanderlei Sebastião de. Pandemia, ciência e sociedade: a Covid-19 no Paraná. In: Revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos (Blog). Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/pandemia-ciencia-e-sociedade-a-covid-19-no-parana/ Publicado em 22 abr. 2020. Acesso em 22 abr. 2020.
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“Não é meu intuito estabelecer polêmica”: a chegada da peste ao Brasil, análise de uma controvérsia, 1899 Artigo de Dilene Raimundo do Nascimento e Matheus Alves Duarte da Silva, Nov 2013, vol.20, suppl.1
Bactéria ou parasita? a controvérsia sobre a etiologia da doença do sono e a participação portuguesa, 1898-1904. Artigo de Isabel Amaral. Dez 2012, vol.19, no.4
‘Formidável contágio’: epidemias, trabalho e recrutamento na Amazônia colonial (1660-1750), artigo de Rafael Chambouleyron, Benedito Costa Barbosa, Fernanda Aires Bombardi e Claudia Rocha de Sousa (vol.18, no.4, dez 2011)
A epidemia de cólera de 1853-1856 na imprensa portuguesa, artigo de Maria Antónia Pires de Almeida (v. 18, no.4, dez 2011)
A gripe de longe e de perto: comparações entre as pandemias de 1918 e 2009, artigo de Adriana Alvarez et al. (vol.16, no.4, dez 2009)
Antiescravismo e epidemia: “O tráfico dos negros considerado como a causa da febre amarela”, de Mathieu François Maxime Audouard, e o Rio de Janeiro em 1850. Kaori Kodama (vol.16, no.2, Jun 2009)
A epidemia de gripe espanhola: um desafio à medicina baiana, artigo de Christiane Maria Cruz de Souza (vol.15, no.4, dez 2008)
O Carnaval, a peste e a ‘espanhola’. Artigo de Ricardo Augusto dos Santos (v.13, n.1, jan./mar. 2006)
A gripe espanhola em Salvador, 1918: cidade de becos e cortiços. Artigo de Christiane Maria Cruz de Souza (vol.12, no.1, abril 2005)
Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro, artigo de Adriana da Costa Goulart (v. 12, no.1, abr 2005)
A cidade e a morte: a febre amarela e seu impacto sobre os costumes fúnebres no Rio de Janeiro (1849-50) – Cláudia Rodrigues (vol.6, no.1, Jun 1999)
E ainda, na revista HCS-Manguinhos, artigos em inglês e espanhol:
La “cultura de la sobrevivencia” y la salud pública internacional en América Latina: la Guerra Fría y la erradicación de enfermedades a mediados del siglo XX, artigo de Marcos Cueto (vol.22, no.1, mar 2015)
Curing by doing: la poliomielitis y el surgimiento de la terapia ocupacional en Argentina, 1956-1959., artigo de Daniela Edelvis Testa (vol.20, no.4, dez 2013)
Las epidemias de cólera en Córdoba a través del periodismo: la oferta de productos preservativos y curativos durante la epidemia de 1867-1868., artigo de Adrián Carbonetti e María Laura Rodríguez (vol.14, no.2, jun 2007)
El rastro del SIDA en el Perú, artigo de Marcos Cueto (vol.9, 2002)
Caponi, Sandra. Lo público y lo privado en tiempos de peste. Jun 1999, vol.6, no.1