Historiadora estuda pesquisas sobre raça, miscigenação e genética de populações na segunda metade do século XX

Dezembro/2019

Blog de HCS-Manguinhos

Ana Carolina Vimieiro Gomes

As permanências e críticas ao conceito científico de raça, os debates sobre miscigenação racial da população brasileira, as pesquisas sobre causas hereditárias de algumas doenças e questões de ordem bioética, como os procedimentos de coleta e uso de amostras biológicas das populações, além das transformações na genética das populações humanas com o advento da descoberta do DNA e do projeto Genoma Humano, são alguns dos temas que vêm sendo investigados recentemente pela historiadora Ana Carolina Vimieiro Gomes. Professora de História das Ciências do Departamento de História da UFMG, ela se debruça desde 2017 sobre a temática da história da diversidade biológica humana na genética na segunda metade do século XX, com financiamento do CNPq e do Consortium for the History of Science Technology and Medicine.

“Esta agenda de pesquisa segue os traços, amplia e aprofunda estudos anteriores realizados pelo pesquisador Ricardo Ventura Santos e Vanderlei Sebastião sobre a introdução da genética das populações humanas no Brasil nos anos 1960, sua relação com os investimentos da Fundação Rockefeller e outras agências nacionais e estrangeiras na ciência brasileira do pós-guerra e com programas internacionais de pesquisa genética e da evolução humana em populações então tidas como primitivas”, conta Ana Carolina.

Uma das pesquisas trata especificamente da história da genética sobre a população do Nordeste, com enfoque nos estudos “antropogenéticos” da geneticista baiana Eliane Azevedo, do Laboratório de Genética Médica da UFBA, desenvolvidos da década de 1960 a 1980. O propósito é compreender de que forma os “nordestinos” foram tomados como objeto de pesquisa da genética das populações.

Ana Carolina destaca que um aspecto interessante desse estudo com os nordestinos está na tentativa de usar os sobrenomes como traço que se relacionaria com a genética, e, assim, com a ancestralidade da população. “Após amplo levantamento dos sobrenomes mais comuns na região, em especial na Bahia, Eliana Azevedo e colaboradores encontraram que os sobrenomes de conotação religiosa, como Santos, Santana, Jesus, Nascimento etc eram mais comuns em pessoas classificadas como “negras” e “mulatas”, sobretudo as mulheres. E mais, pessoas com fenótipo de “brancos”, carregando sobrenome de conotação religiosa, eram propensos à presença de genes associados a populações negras, demonstrando, portanto, a miscigenação racial”, revela

Outro projeto em andamento, co-coordenado pela professora Rosanna Dent, do Departamento de História do New Jersey Institute of Technology, investiga a história da formação do grupo de geneticistas atuantes desde os anos 1950 no Departamento de Genética e Biologia Molecular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A proposta é estudar o papel dessa instituição no desenvolvimento do campo da genética humana no Brasil e que tem como figura central o geneticista Francisco Salzano (falecido em 2018 aos 89 anos). Salzano foi quem trouxe o estudo da genética humana para a UFRGS em meados dos anos 1950 e abriu linhas de pesquisa e formou grupo de pesquisadores em genética médica e estudos da variação biológica humana não-patológica – por exemplo, estrutura populacional, ancestralidade genética, processos microevolutivos em humanos. Esse grupo de geneticistas desde então mantêm significativa atividade científica.

“Essas minhas pesquisas direcionam o olhar não apenas para aspectos epistemológicos da genética humana, mas, principalmente, para as práticas, ou seja, em sentido mais amplo, as várias ações humanas mobilizadas pela comunidade científica no fazer ciência. O olhar para a comunidade nos permite, por exemplo, lançar luz na marcante presença e contribuições das mulheres no desenvolvimento do campo da genética humana no Brasil. Este é o caso de Eliane Azevedo na UFBA e as mulheres que compõem o grupo de geneticistas da UFRGS: Mara Hutz, Maria Cátira Bortolini, Tania Weimer e Veronica Zembruski”, conta.

Ana Carolina, que é editora da seção Livros & Redes da revista HCS-Manguinhos, revela que historiadores da ciência têm se interessado em pensar a história da genética humana a partir das dinâmicas afetivas e economia moral envolvidas na pesquisa – como aspectos éticos da pesquisa realizada com seres humanos -, a importância de conhecimentos tácitos e incorporados relacionados à subjetividade do pesquisador, os novos atores, como os técnicos de laboratório ou guias de viagem – ora esquecidos ora desapercebidos em narrativas tradicionais -, e as muitas formas de trabalho invisível, isto é, uma complexidade de processos científicos e relações políticas e sociais que raramente aparecem nas publicações científicas.

“Cabe aqui chamar a atenção para uma das frentes de investigação a partir dessa agenda: a genética das populações humanas deste contexto dos anos 1960 envolvia o trabalho de campo, por exemplo, em comunidades indígenas, onde, numa trama de negociações e complicadas condições de pesquisa em regiões muitas vezes isoladas, os pesquisadores colhiam dados antropométricos, demográficos, antropológicos e amostras biológicas para as suas pesquisas”, comenta.

Já o estudo inicial em genética populacional com os nordestinos foi realizado com imigrantes recém-chegados na Hospedaria de Imigrantes em São Paulo no início dos anos 1960. “O fazer científico implicava toda uma estrutura de prática extra-laboratorial, que, junto à necessidade de novos arranjos metodológicos de coleta de dados, exigiam uma complexa interação interpessoal entre pesquisadores e sujeitos objetos de pesquisa, bem como dos pesquisadores, técnicos de laboratório e atores locais, como as autoridades responsáveis pela hospedaria de imigrantes, por exemplo – que, aliás, muito auxiliavam no andamento do dia a dia da pesquisa e coleta de amostras biológicas durante as viagens”, conta Ana Carolina.

A pesquisadora explica que a história oral tem sido usada como recurso para explorar as experiências vividas e realidades emocionais dos pesquisadores e outros atores envolvidos na produção de conhecimento. “Os depoimentos dos geneticistas têm proporcionado reflexões cruciais para entender o sentido dados por esses sujeitos sobre a sua trajetória e fazer científico”, relata.

Ana Carolina cita, por exemplo, a fala da geneticista Eliane Azevedo para justificar sua escolha por uma pesquisa mais voltada para aspectos “antropogenéticos” (história racial da população) do que para uma genética populacional de modelos estatísticos e computacionais: “A minha visão não é muito mais frouxa. É mais do humano. Do ser humano assim. Isso sempre me atraiu. A vida inteira eu senti uma atração pelo humano. Pelas pessoas.”

Leia em HCS-Manguinhos:

Vimieiro-Gomes, Ana Carolina. Uma agenda científica para a eugenia latina?. Dez 2016, vol.23, suppl.1

Vimieiro-Gomes, Ana Carolina, Wegner, Robert and Souza, Vanderlei Sebastião de Carta dos Editores Convidados. Dez 2016, vol.23, suppl.1

Vimieiro-Gomes, Ana Carolina. Biotipologia, regionalismo e a construção de uma identidade corporal brasileira no plural, década de 1930. Dez 2016, vol.23, suppl.1

Gomes, Ana Carolina Vimieiro, Silva, André Luiz dos Santos and Vaz, Alexandre Fernandez O Gabinete Biométrico da Escola de Educação Física do Exército: medir e classificar para produzir corpos ideais, 1930-1940*. Dez 2013, vol.20, no.4

Gomes, Ana Carolina Vimieiro and Dalben, André O controle médico-esportivo no Departamento de Educação Física do Estado de São Paulo: aproximações entre esporte e medicina nas décadas de 1930 e 1940. Jun 2011, vol.18, no.2