Dezembro/2019
Marina Lemle | Blog de HCS-Manguinhos
Pensar a Aids no contexto atual de conservadorismo é um desafio essencial na luta contra a doença. Quem afirma é Eliza Vianna, mestre e doutora em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz com pesquisas sobre história da Aids. Para ela, que é professora do Instituto Federal de Alagoas, evitar falar de sexo e sexualidade na sociedade e principalmente nas escolas, tendo em vista o aumento da transmissão entre os jovens, é muito nocivo.
Por ocasião do Dia Mundial de Luta Contra a Aids, celebrado em 1º de dezembro, e do lançamento da nova campanha de prevenção ao HIV/Aids do Ministério da Saúde na última sexta-feira, 29 de novembro, convidamos Eliza a dar uma entrevista ao Blog de HCS-Manguinhos.
Como a luta contra a Aids foi mudando nas últimas quatro décadas?
A luta contra a Aids muda no próprio percurso da epidemia. A Aids surge no começo dos anos 1980 como um mal ameaçador e desconhecido, evocando uma série de estigmas associados a outras doenças do passado, colocando em xeque o otimismo da medicina (enaltecido pela erradicação de doenças como a varíola) e evidenciando preconceitos do meio médico, da imprensa, do poder público, da sociedade em geral.
No começo, a dramaticidade da doença tornava latente a luta pela vida e contra o preconceito. Diante da ausência de tratamentos eficazes, a escolha de não morrer em silêncio foi extremamente marcante para o ativismo da Aids. E essa escolha foi crucial para, no Brasil e no mundo, questionar a estrutura de poder da medicina, da indústria farmacêutica, do poder público, cobrando respostas. Essa mobilização resultou em respostas que foram desde a reformulação das campanhas de prevenção à mudança nos protocolos de testes de medicamentos e – no caso brasileiro – acesso universal a eles, quando surgiram. E é justamente o surgimento das terapias antirretrovirais, o chamado coquetel, que pode ser considerado um marco na história da Aids.
No Brasil, a mobilização popular e o contexto político favoreceram a adoção da distribuição dos medicamentos e acesso ao tratamento pelo SUS na segunda metade da década de 1990, e isso alterou profundamente a dinâmica da doença. Do ponto de vista mais objetivo, interrompeu a dramaticidade da doença, ela deixou de ser letal como era. Trouxe o que muitos ativistas chamam de “efeito Lázaro”, pois realmente tirou pessoas do leito de morte. Do ponto de vista da história
política em torno da doença, um desdobramento desse processo foi o arrefecimento do tema da Aids como pauta no debate público justamente no momento em que a doença começou a se pauperizar e interiorizar. As verbas internacionais que fomentaram o surgimento das ONGs escassearem, o tema saiu dos jornais, as campanhas públicas ficaram escassas e restritas ao carnaval.
Que desafios se impõem hoje em dia, e diante de quais novos problemas?
Um desafio que considero essencial é pensar a doença no contexto atual de conservadorismo. Os índices de infecção são bastante altos nos últimos boletins epidemiológicos. A Aids não deixou de matar apesar do tratamento. Em parte porque a pauperização e interiorização da doença dificultam o acesso à saúde, em parte por causa do diagnóstico tardio. Por isso as últimas campanhas enfatizam a realização do exame, que agora é feito pelo teste rápido, em vinte minutos. Contudo, um desafio que enxergo no combate à doença hoje é o conservadorismo. Como prevenir uma infecção sexualmente transmissível sem falar de sexo e sexualidade? Evitar esses temas no âmbito da sociedade e principalmente nas escolas, tendo em vista que o aumento da transmissão é entre os jovens, é muito nocivo. Por mais que hajam campanhas pontuais, elas são superficiais. Dizer “use camisinha”, no meu entender, não resolve muita coisa se você não ensina de fato a usar, não diz em que momento do sexo o preservativo deve ser colocado, quais são os comportamentos que trazem risco e quais não trazem.
O que achou da nova campanha do Ministério da Saúde?
Acho interessante uma campanha que estimule o diagnóstico precoce e a adesão ao tratamento, mas soa hipócrita num momento de cortes de recursos. Há notícias de falta de distribuição de medicamentos e dificuldades na realização dos exames para detecção da carga viral. Do ponto de vista científico, vivemos um momento de otimismo em relação à doença, principalmente comparado ao começo da epidemia. A profilaxia pós-exposição (PEP) implementada, a profilaxia pré-exposição (Prep) em implementação nacionalmente, a possibilidade de zerar a carga viral tornando o vírus intransmissível. Contudo, todos esses avanços ficam ameaçados com os ataques ao SUS…
Poderia falar um pouco sobre a pesquisa sobre a luta contra a Aids, a redemocratização no Brasil e os grupos Pela Vidda RJ e SP?
Dilene Nascimento, da Casa de Oswaldo Cruz, e eu abordamos em nossas pesquisas o grupo Pela Vidda. Nos últimos anos, com a disponibilização do acervo da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia) na Fiocruz, temos mergulhado nessa documentação riquíssima que abre caminho para muitas pesquisas. O acervo foi doado à Fiocruz e agora ocupa uma sala da Biblioteca de Manguinhos, disponível para pesquisas.
Fizemos uma análise de alguns periódicos do Grupo Pela Vidda RJ e SP, pensando as relações entre o ativismo da Aids no Brasil e o contexto de redemocratização. Essa reflexão veio muito da constatação de que importantes membros fundadores dessas ONGs traziam experiência de militância advinda da luta contra a ditadura militar brasileira. Um exemplo importantíssimo é o Herbert Daniel, fundador do Pela Vidda RJ, entusiasta da fundação do grupo em SP. A gente tentou entender como que essa experiência interferiu num novo modelo de ativismo, com novas demandas e urgências trazidas pela epidemia.
Como citar este post:
Conservadorismo é um desafio na luta contra a Aids. Entrevista com Eliza Vianna. Blog de HCS-Manguinhos. Publicado em 30 de novembro de 2019. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/conservadorismo-e-um-desafio-na-luta-contra-a-aids
Leia no Blog de HCS-Manguinhos:
Marcos Cueto e Gabriel Lopes publicam artigo sobre a participação do Brasil na política global da Aids
Trabalho acaba de ser publicado na revista Social History of Medicine (Oxford University Press)
HIV/Aids, os estigmas e a história
Leia a Carta dos Editores André Felipe Cândido da Silva e Marcos Cueto (HCS-Manguinhos, vol.25, n.2, abr./jun. 2018)
Aids: 30 anos depois, jovens em risco
Dilene Raimundo do Nascimento fala sobre a Aids no Brasil desde a década de 1980 e chama atenção para a necessidade de se conscientizar os jovens
Estudo analisa noticiário do Dia Mundial da Luta contra a Aids
Ana Condeixa analisou como dois grandes jornais brasileiros abordaram o tema anualmente por 25 anos
A emergência da Aids no estado do Amazonas
Pesquisadores analisam o contexto histórico, social e político do surgimento da doença no fim da década de 1980 e como as respostas locais foram moldadas
Leia ainda em HCS-Manguinhos:
Rocha Kadri, Michele, e Schweickardt, Júlio César. A emergência da Aids no Amazonas (vol.23, no.2, abr./jun. 2016)
Nascimento, Dilene Raimundo do. A face visível da Aids. Jun 1997, vol.4, no.1
Andrade, Maria de Fatima de Oliveira, Martins, Maria Cezira Fantini Nogueira and Bógus, Cláudia Maria Casa Siloé: a história de uma ONG para crianças portadoras de HIV/AIDS. Dez 2007, vol.14, no.4
Zaquieu, Ana Paula V. Os desafios da alteridade:considerações sobre gênero e sexualidade entre militantes de uma ONG/Aids carioca. Mar 2006, vol.13, no.1
Marques, Maria Cristina da Costa. Contradições e assimetrias na construção do conhecimento em Aids/HIV. Ago 2005, vol.12
Góis, João Bôsco Hora. Novas reflexões sobre a Aids?. Ago 2005, vol.12, no.2
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Góis, João Bôsco Hora. Reabrindo a ‘caixa-preta’: rupturas e continuidades no discurso sobre Aids nos Estados Unidos (1987-98). Dez 2002, vol.9, no.3
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Artigos em francês e espanhol:
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