Vanderlei de Souza lança livro sobre Renato Kehl e a eugenia no Brasil

Outubro/2019

Blog de HCS-Manguinhos

Capa do livro

Encarando a miscigenação racial como responsável por uma suposta degeneração dos brasileiros que prejudicaria o progresso do país, o eugenista Renato Kehl defendia medidas como esterilização, controle matrimonial, seleção de imigrantes e outras políticas para a “purificação racial” e a eliminação dos “degenerados”.

No livro Renato Kehl e a Eugenia no Brasil: ciência, raça e nação no período entreguerras, que acaba de ser lançado pela Editora Unicentro, Vanderlei Sebastião de Souza faz um estudo introdutório sobre a eugenia no Brasil e sua relação com o movimento em outros lugares do mundo, assim como busca compreender a circulação, as apropriações e os embates que as ideias eugênicas geraram no Brasil.

Professor de história da Universidade Estadual do Centro-Oeste e editor adjunto de HCS-Manguinhos, Souza transformou em livro a sua pesquisa de mestrado em História das Ciências realizada na Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, com orientação do professor Robert Wegner – que também orientou seu doutorado, desta vez sobre Edgard Roquette Pinto. O autor falou sobre o novo livro ao Blog de HCS-Manguinhos e também sobre o cenário atual das pesquisas sobre eugenia.

Qual a importância de Renato Kehl na história da eugenia no Brasil?

Renato Kehl é o principal personagem do movimento eugênico brasileiro, além de ser um dos nomes mais influentes da eugenia na América Latina. Ao longo de sua trajetória, publicou mais de duas dezenas de livros sobre eugenia e foi colunistas em vários jornais e revistas, destacando-se pela defesa e divulgação incansável das ideias eugênicas. Também participou da criação de sociedades eugênicas, como a Sociedade Eugênica de São Paulo, fundada em 1918, e da Comissão Central Brasileira de Eugenia, criada durante o governo Vargas com o objetivo de assessorar o governo em projetos eugênicos. Kehl foi ainda diretor e fundador do Boletim de Eugenia, periódico que teve um papel importante na difusão das ideias eugênicas no Brasil.

Sua biografia é emblemática especialmente por ter defendido ideias e medidas eugênicas bastante radicais, ligadas à chamada “eugenia negativa”, que promovia a implantação de projetos de esterilização eugênica, controle matrimonial, seleção de imigrantes, entre outras políticas que visavam a purificação racial e a eliminação dos indivíduos supostamente degenerados. Essas medidas eram baseadas no racismo científico, em políticas de segregação racial e ideologias que desde o início do século XX justificaram o racismo, especialmente em países como os Estados Unidos, Alemanha, Suécia e Inglaterra.

Nos anos 1930, no auge do radicalismo eugênico, Renato Kehl não poupou elogios às medidas eugênicas defendidas pelo governo nazista alemão, defendendo que as políticas eugênicas do Terceiro Reich deveriam inspirar o mundo todo como exemplo de política biológica nacional implantada com coragem e planejamento. Vale lembrar que Renato Kehl conhecia o movimento eugênico alemão de perto, uma vez que fizera seguidas viagens para Alemanha na virada dos anos 1920 para os anos 1930, quando entrou em contato com eugenistas e instituições eugênicas da Alemanha e de outros países do norte da Europa.

Vanderlei Sebastião de Souza

Quais são os aspectos principais analisados no livro?

Procuro analisar a trajetória de Renato Kehl e compreender sua aproximação com essa eugenia negativa e toda essa engenharia genética que se desenvolveu no período, especialmente a partir do seu diálogo com a eugenia alemã.

O livro analisa as visões negativas de Renato Kehl sobre a formação racial do Brasil, destacando a maneira pessimista, autoritária e excludente com que o eugenista diagnosticava os “problemas do Brasil”, que segundo ele estavam ligados ao processo de miscigenação racial, responsável pela suposta degeneração dos brasileiros.  Ao mesmo tempo, o livro procura compreender a circulação, as apropriações e os embates que essas ideias eugênicas geraram no Brasil, confrontando as visões antagônicas que os projetos de Renato Kehl produziram no movimento eugênico brasileiro.

O livro preocupa-se em compreender como o movimento eugênico brasileiro, sob a liderança de Renato Kehl, participou de um amplo debate internacional sobre projetos de seleção racial baseados em princípios biológicos e perspectivas segregacionistas. Ao mesmo tempo, também destaca que a eugenia no Brasil foi apropriada de distintas maneiras, estabelecendo visões e práticas polissêmicas no interior do movimento eugênico. Um exemplo disso pode ser visto tanto pelos adeptos das ideias radicais de Renato Kehl, quanto pelo uso que médicos, pensadores sociais e educadores ligados ao movimento sanitarista fizeram da eugenia, associando-a à medicina social, ou mesmo pelo uso que antropólogos como Edgard Roquette-Pinto fizeram da eugenia para demonstrar a viabilidade da população mestiça brasileira.   

Como foi o processo de pesquisa que resultou no livro?

O livro foi publicado a partir da pesquisa de mestrado defendida ainda em 2006, no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde, na Casa de Oswaldo Cruz. A ideia para a publicação do livro surgiu mais recentemente, depois que voltei a pesquisar a história da eugenia.

Minha trajetória de pesquisa sempre esteve ligada à discussão sobre raça, ciência e sociedade, e de alguma maneira o debate sobre eugenia sempre esteve presente. Depois de realizar pesquisa de doutorado sobre a história da antropologia física no Brasil, quando concentrei minha análise na obra do antropólogo Edgard Roquette-Pinto e da produção realizada no Museu Nacional, percebi com mais clareza sobre a centralidade que as ideias eugênicas tiveram no debate sobre raça, nas discussões sobre identidade, nação e modernidade, ou mesmo na implantação de políticas de saúde, higiene e educação. Entendi, então, que valia a pena retomar essa discussão sobre eugenia e publicar o livro. Além disso, a publicação do livro também foi estimulada pelo interesse crescente que a história da eugenia vem despertando no Brasil.

Quais as principais contribuições dos estudos recentes da história da eugenia no Brasil?

Nos últimos anos, vários trabalhos têm sido publicados, formado especialmente por pesquisas derivadas de dissertações e teses de pós-graduação, ampliando em diferentes direções a compreensão que tínhamos inicialmente sobre a eugenia no Brasil. Em primeiro lugar, essas pesquisas têm explorado os usos da eugenia em diferentes campos das ciências, como a psiquiatria, o direito, a educação, a antropologia física, a medicina legal, a biotipologia e a educação física. A historiografia também tem apontado para a ampla relação entre eugenia, raça e formação da identidade nacional, demonstrando como a eugenia esteve presente em debates sobre imigração, ocupação do território nacional, branqueamento da população e miscigenação racial. Nesse aspecto, chama atenção a forma multifacetada em que a eugenia foi empregada no interior do movimento eugênico, sendo incorporada em diferentes projetos científicos e políticos de seleção social e reforma nacional.

De outro lado, a historiografia também tem centrado atenção no processo de institucionalização da eugenia, com estudos sobre as sociedades eugênicas, os periódicos e os congressos científicos organizados pelo movimento eugênico. Também é possível destacar o interesse pela trajetória, a atuação e a obra de intelectuais, cientistas e educadores que promoveram a eugenia no Brasil. Esses trabalhos vêm demonstrando que a eugenia brasileira foi, como já destacamos, muito mais heterogênea do que se projetava numa primeira análise. Neste contexto, trabalhos mais recentes vêm demonstrando que a eugenia brasileira teve diferentes orientações políticas e teóricas, e que incorporou tanto as medidas mais suaves, ligadas à eugenia latina, quanto medidas mais radicais, como a eugenia negativa, mais comumente associada à tradição alemã e norte-americana. Esses trabalhos vêm demonstrando que, apesar das limitações ditadas pela tradição católica e pela influência mais difusa do evolucionismo neolamarckista, o movimento eugênico brasileiro também dialogou de perto com a eugenia, a medicina, a antropologia e a genética de países mais alinhados com o racismo científico de início do século XX, como os Estados Unidos, a Alemanha e outros países do norte da Europa.

Como contribuição geral, e pensando no debate público mais ampliado, entendo que essas pesquisas sobre a história da eugenia no Brasil vêm contribuindo para refletir sobre as relações entre ciência, política, ética e sociedade, temática fundamental tanto no campo da ciência quanto das políticas públicas, especialmente nas áreas da saúde, educação e promoção da igualdade racial. Em segundo lugar, a problematização em torno da história da eugenia também tem contribuído para refletir sobre o mito da democracia racial no Brasil, sobre a construção das identidades raciais, as exclusões e preconceitos baseados em estigmas raciais, ou sobre o peso estrutural que o racismo continua exercendo na sociedade brasileira.    

O livro está a venda na Estante Virtual.

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Ciência e miscigenação racial no início do século XX: debates e controvérsias de Edgard Roquette-Pinto com a antropologia física norte-americana, artigo de Vanderlei Sebastião de Souza (vol.23, no.3, jul./set. 2016)

Como citar este post:

Vanderlei de Souza lança livro sobre Renato Kehl e a eugenia no Brasil. Blog de HCS-Manguinhos. Publicado em 31 de outubro de 2019. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/vanderlei-de-souza-lanca-livro-sobre-renato-kehl-e-a-eugenia-no-brasil