Paulo César Gomes: ‘O que ocorreu em 1º de abril de 1964 foi um golpe de Estado civil-militar’

Abril/2019

Roberta Cardoso Cerqueira / Blog de HCS-Manguinhos

Paulo César Gomes

Neste mês de abril em que o golpe militar de 1964 completa 55 anos envolto em controvérsias, convidamos o historiador Paulo César Gomes, idealizador e editor-chefe do site História da Ditadura, para esclarecer essa história. “Incumbimo-nos da missão de demonstrar que a História não é uma terra sem lei, mas que há regras e práticas que nos permitem alcançar o que chamamos de verdade histórica”, afirma Gomes.

Doutor em História Social pela UFRJ, ele vai lançar o seu segundo livro, Liberdade vigiada. As relações entre a ditadura militar brasileira e o governo francês: do golpe à anistia (Record, 2019), no dia 30 de maio, às 18h30, na livraria Leonardo da Vinci, no Centro do Rio de Janeiro.

Capa do livro. Clique para ampliar.

Em 1º de abril de 1964 sofremos um golpe de Estado. Por que podemos afirmar que foi um golpe militar?

De certa forma, é surpreendente para nós historiadores que, mesmo 55 anos após o golpe de 1964, a colocação dessa pergunta ainda faça sentido. Para a historiografia séria, produzida com base em métodos rigorosos, em fontes documentais fidedignas e internacionalmente reconhecida, não há dúvida de que o movimento que ocorreu em 1º de abril de 1964 foi um golpe de Estado. É um fato histórico irrefutável. Há interpretações divergentes, por exemplo, acerca das causas que levaram ao golpe ou mesmo sobre quais fatores teriam tido maior peso na tomada do poder pelos militares. Esses questionamentos fazem parte da tentativa de compreensão aprofundada de qualquer período histórico. No entanto, nos últimos anos, há um movimento, chamado erradamente de revisionista, mas que se trata, na realidade, de um negacionismo, que busca refutar evidências históricas comprovadas com a criação de narrativas fantasiosas e mentirosas. Atualmente, observa-se mesmo um esforço oficial de falseamento da História. Essa mobilização está inserida em uma conjuntura mais ampla de disseminação das chamadas fakenews, bem como de um vigoroso anti-intelectualíssimo, o que denota um momento muito obscurantista da história.

Há interpretações recentes, com as quais eu me alinho, que veem o golpe de Estado de 1964 como civil-militar. Isso porque o movimento complexo, e não necessariamente homogêneo, que tirou ilegalmente João Goulart da Presidência da República, teve a participação efetiva tanto de indivíduos militares, cujo exemplo mais emblemático foi a ida das tropas comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho com o intuito de ocupar o então estado da Guanabara; quanto de civis, como foi o caso do presidente do Congresso Nacional, o senador Auro de Moura Andrade, que declarou vaga a Presidência da República com João Goulart estando em território nacional, o que foi um ato absolutamente inconstitucional. Tanto que, em novembro de 2013, o próprio Congresso Nacional anulou a seção legislativa que depôs João Goulart, ocorrida no dia 2 de abril de 1964.

Muitas pessoas consideram o 1º de abril como uma revolução e veem como positiva a tomada de poder pelos militares. Você poderia comentar os aspectos que levam as pessoas a acreditarem que não houve uma ditadura no país?

Aqui temos duas questões distintas, mas com pontos em comum entre elas. A narrativa propagada pelos militares durante todos esses anos foi a de que o golpe de 1964 teria sido, de fato, uma revolução. Além disso, os golpistas defendiam que a tomada do poder pelas Forças Armadas teria sido uma resposta aos apelos da sociedade brasileira de modo geral. Cabe lembrar que os festejos dessa efeméride só foram proibidos em 2011, pela presidenta Dilma Roussef, logo no início de seu primeiro mandato.

Não há dúvidas de que, pautados pelo anticomunismo típico da Guerra Fria e pelos – supostamente ameaçados – valores cristãos, setores significativos da sociedade brasileira apoiaram o golpe, o que em hipótese alguma justificaria o rompimento das regras constitucionais. No entanto, o golpe não pressupunha a permanência dos militares no poder por tantos anos, isto é, o golpe e a ditadura, que se iniciou logo em seguida, são fatores distintos. Muitos dos que apoiaram a deposição de Jango imaginavam que os militares fariam uma intervenção pontual e que as eleições presidenciais previstas para 1965 ocorreriam normalmente. Esse foi o caso, por exemplo, de Juscelino Kubitschek, Carlos Lacerda e Ademar de Barros, que eram os candidatos com maior chance de se elegerem do pleito de 1965. Ao mesmo tempo, com o avanço das práticas arbitrárias contra a população civil, sobretudo contra setores da classe média, muitos indivíduos e instituições passaram a fazer críticas ao governo. Como foi o caso da Igreja Católica, principalmente após a publicação do AI-5, quando seus próprios membros passaram a ser atingidos.

Decerto, até hoje há pessoas que guardam uma memória positiva do golpe e dos anos em que o país viveu sob um regime de exceção. Não é possível simplesmente afirmar que essas memórias sejam falsas. Alguns grupos sociais minoritários viveram a ditadura como um período positivo em suas vidas. Contudo, as memórias são apenas uma das fontes utilizadas pelos historiadores para produzirem suas análises. O trabalho historiográfico exige o cotejamento do maior número possível de fontes históricas para que se possa traçar um quadro complexo e aprofundado acerca do passado. Hoje, por exemplo, é possível afirmar com segurança que o chamado “milagre econômico”, embora efetivamente tenha proporcionado altos índices de crescimento para o país, beneficiou setores sociais muito limitados e, ainda, contribuiu para o aumento da desigualdade social.

É preciso, também, considerar que, em um país como o nosso, marcado pelos baixos índices educacionais, há um grande desconhecimento sobre a história brasileira, o que facilita a propagação de explicações simplistas e até mesmo falseadas acerca de nosso passado. Esse fator contribui tanto para que muitos desconheçam que o país tenha vivido um golpe de Estado, seguido por 21 anos de ditadura militar, como para que as explicações negacionistas ganhem terreno com facilidade. Devemos ainda lembrar que a história brasileira é fortemente marcada, desde seu início, pelo autoritarismo do Estado e mesmo das relações entre os diferentes grupos sociais. Há teóricos que falam da existência de uma sociedade marcada por uma cultura política autoritária.

Outros países da América Latina também sofreram com ditaduras militares. Você poderia comentar os motivos que levam estes países a terem uma visão mais crítica que o Brasil e condenarem a ditadura militar?

Cada país latino-americano teve particularidades em seu processo de transição. A Argentina caracterizou-se por estabelecer políticas de memória muito bem formuladas, resultantes de grandes mobilizações populares, cujo exemplo mais emblemático e duradouro são as Mães e Avós da Praça de Maio. O país enfrentou seu passado ditatorial de modo bastante vigoroso, levando à Justiça os acusados de violações aos direitos humanos, muitos dos quais acabaram sendo condenados. Os argentinos, de modo geral, mesmo as alas de direita, se orgulham de representarem um modelo internacional no tratamento do tema dos direitos humanos. As conquistas nesse setor são tão bem estabelecidas que todas as tentativas de modificação do sistema enfrentam forte resistência social. Embora tenha havido alguns retrocessos no governo Macri, há muita dificuldade de se implantar políticas conservadoras nesse sentido.

Já o Chile iniciou sua transição com um plebiscito, muito bem retratado no filme No, de Pablo Larraín. A sociedade chilena é muito dividida com relação a memória construída acerca da ditadura de Pinochet. As conquistas alcançadas em prol dos direitos humanos enfrentaram constante oposição dos setores conservadores. Ainda assim, os avanços foram muito significativos. Santiago do Chile tem um importantíssimo museu de memória e direitos humanos que, apesar das controvérsias, simboliza de modo muito significativo a imagem que boa parte da sociedade chilena quer construir acerca de seu passado ditatorial. Um ponto importante a ressaltar é que, ao contrário da Argentina, que tem políticas sociais mais consolidadas, o Chile ainda vive os prejuízos do modelo econômico liberal implantando por Pinochet, cujas consequências mais graves continuam atingindo os grupos sociais desfavorecidos, que se endividam enormemente para ter acesso aos serviços básicos de saúde e educação.

O Brasil teve seu processo de transição marcado pela conciliação entre os diferentes setores sociais, prática muito comum ao longo da história do país. Além disso, as autoridades militares controlaram de modo acirrado a lenta abertura política. Embora os movimentos sociais, que voltaram a se fortalecer no final da década de 1970, tenham sido importantes, os militares conseguiram planejar minuciosamente sua saída do poder e foram muito bem-sucedidos nesse projeto. Além disso, o Brasil demorou muito para começar a implantar medidas de justiça de transição, que, até hoje, causam muitas controvérsias, como foi o caso da Comissão Nacional da Verdade. É possível também afirmar que o Estado brasileiro fracassou na criação de políticas públicas de memória, o que acabou deixando espaço para o crescimento de interpretações negacionistas.

Como os historiadores podem contribuir para que esse tema seja visto de forma mais crítica? A história pública pode contribuir neste sentido?

Essa não é uma questão fácil de ser respondida, sobretudo em um momento em que se vive uma grande desvalorização social do conhecimento histórico. Os argumentos racionais vêm sendo refutados de diversas formas como, por exemplo, pela fé religiosa. Vivemos um período muito estranho e obscuro. De todo modo, parece-me que esse é o momento em que os historiadores precisam assumir a função social de atuar publicamente para propor reflexões críticas sobre o passado. Há uma verdadeira arena de embates narrativos, que podem trazer consequências reais graves para a sociedade brasileira, como, por exemplo, o fortalecimento de práticas estatais arbitrárias, que têm o objetivo de não apenas cercear as liberdades individuais, mas também de oprimir os grupos sociais economicamente desfavorecidos e as minorias.

Ao mesmo tempo, nos últimos anos, temos visto o surgimento de projetos do que chamamos História Pública. Na minha interpretação, trata-se, sobretudo, de um campo de divulgação científica que busca ampliar o alcance do conhecimento histórico sério e bem fundamentado produzido por profissionais. A ideia é difundir para o maior número possível de pessoas reflexões sobre o passado que podem nos instrumentalizar para olhar para a realidade de modo mais crítico.

Em 2016, quando resolvi criar o projeto História da Ditadura, a ideia era buscar dialogar com públicos que, por razões diversas, estão excluídos dos debates históricos mais aprofundados. O propósito dessa iniciativa não é levar o conhecimento pronto para aqueles que, em tese, ignoram a história recente do Brasil, mas buscar fornecer subsídios para que esses indivíduos possam desenvolver uma consciência histórica, bem como auxiliá-los a responder seus questionamentos acerca do passado. Incumbimo-nos da missão de demonstrar que a História não é uma terra sem lei, mas que há regras e práticas que nos permitem alcançar o que chamamos de verdade histórica. Vemos o público do site História da Ditadura não como receptáculos neutros a quem se deve levar a luz do conhecimento, mas como agentes históricos que atuam na esfera pública, normalmente não tendo acesso a instrumentos que possam estimular reflexões próprias.

Como citar este post:

Paulo Cesar Gomes: ‘O que ocorreu em 1º de abril de 1964 foi um golpe de Estado civil-militar’, entrevista de Paulo Cesar Gomes a Roberta Cardoso Cerqueira. Publicada em 26 de abril de 2019. Acessado em 26 de abril de 2019. Disponível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/paulo-cesar-gomes-o-que-ocorreu-em-1o-de-abril-de-1964-foi-um-golpe-de-estado-civil-militar/

Leia em HCS-Manguinhos:

Sob o discurso da “neutralidade”: as posições dos psicanalistas durante a ditadura militar, artigo de Carmen Lucia Montechi Valladares de Oliveira (vol.24, supl.1, 2017)

Leia no Blog de HCS-Manguinhos:

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