2 de março/2019
Marina Lemle / Blog de HCS-Manguinhos
Em 1919, o escritor Lima Barreto era internado pela segunda vez no Hospício Nacional de Alienados, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro. Cem nos depois, bem ali, na Avenida Pasteur, na frente do hospital, sua obra desfila em forma de bloco de carnaval, em ritmo de samba, com a língua afiada do povo brincando com a linha tênue que costura loucura e razão.
No domingo passado, 24/2, como em todo domingo anterior ao carnaval há 15 anos, o Coletivo Carnavalesco Tá Pirando, Pirado, Pirou! desfilou pela Avenida Pasteur, endereço do primeiro hospício de América Latina, onde hoje funciona o Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ. Na boca do povo, o enredo “Na terra dos bruzundangas: Lima Barreto visionário”, inspirado no livro “Os Bruzundangas”, que ironiza as elites política e econômica da República dos Estados Unidos da Bruzundanga, país fictício marcado por desigualdades sociais, mau uso do bem público, nepotismo, corrupção e hipocrisias, onde os poderosos querem concentrar a riqueza nas mãos de poucas famílias.
O enredo é duplamente pertinente este ano, diante da mais recente ameaça aos avanços conquistados com a reforma psiquiátrica de 2001, representada por uma nota técnica do Ministério da Saúde que aponta para uma volta ao modelo hospitalocêntrico.
A reforma psiquiátrica, amparada pela lei 10.216, levou à substituição progressiva da internação em manicômios pelo atendimento multiprofissional e personalizado em Centros de Atenção Psicossocial (Caps).
A vida e a obra de Lima Barreto tem relação estreita com a loucura e as instituições manicomiais.
Negro, neto de escravos, estudou em boas escolas graças ao esforço do pai, tipógrafo, e à ajuda do padrinho Visconde de Ouro Preto. A mãe, professora primária, faleceu quando ele tinha só seis anos.
Nos romances, Lima Barreto retratava a vida nos subúrbios, as ruas, bares, costumes e tradições populares. Muitas vezes vítima de discriminação e amargurado pela falta de reconhecimento, mergulhou no álcool e em 1914 foi internado com transtornos mentais pela primeira vez. Um ano depois, publicou sua obra-prima, O triste fim de Policarpo Quaresma, história de um sonhador que é internado no manicômio. Inspirada em seu pai, a obra até hoje é referência no ideário de uma sociedade sem manicômios. Lima Barreto dizia que a sua literatura era “militante”: combatia o racismo, a violência contra a mulher e a psiquiatria manicomial. Ele morreu aos 41 anos, do coração.
Um dos idealizadores do bloco e coordenador do Ponto de Cultura Tá Pirando, Pirado, Pirou! Folia, Arte e Cidadania, ligado à Secretaria Municipal de Cultura/RJ, o psicanalista Alexandre Ribeiro Wanderley explica que a internação é um recurso que só deve ser acionado depois de esgotados todos os meios de manejo da crise.
“Pessoas que vivem com transtornos mentais graves e persistentes devem ser atendidas nos Centros de Atenção Psicossocial, onde recebem cuidados personalizados, isto é, o programa terapêutico é construído por equipe multiprofissional para atender à singularidade de cada sujeito”, afirma Wanderley, que é especialista em saúde mental pelo Instituto Philippe Pinel e doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social/UERJ, com estágio doutoral na Sorbonne – Paris V.
De acordo com o psicanalista, os Caps vêm passando por um processo ostensivo de precarização, com redução da equipe de profissionais, salários atrasados, falta de recursos em geral. “É lamentável que uma política pública reconhecida internacionalmente pela OMS esteja sofrendo este tipo de ataque. Sabemos que há interesses corporativos e econômicos inconfessáveis por detrás do discurso de que o hospital psiquiátrico deve voltar a ocupar um lugar central na atenção à crise. A tendência é o retorno da indústria da loucura, que se alimenta justamente das pessoas mais vulneráveis. É alto o risco do retorno de internações prolongadas desnecessariamente”, alerta.
Wanderley conta que o bloco foi fundado na esteira do movimento de revitalização do carnaval de rua do Rio. “Eu trabalhava no Núcleo de Atenção Psicossocial do Pinel, e tocava nos blocos Céu na Terra e Bangalafumenga. Há alguns anos vinha convidando músicos destes blocos e de outros, como o Empolga às 9 e o Gigantes da Lira, para animar o carnaval dos internos. Numa dessas ocasiões, em fevereiro de 2004, surgiu espontaneamente um pequeno cortejo, que circulou pelo hospital até parar em frente à Unidade de Tratamento para Alcoolismo (UTA)”, recorda.
Em conversas com os colegas Vandré Vidal, musicoterapeuta do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, e Neli de Almeida, psicóloga do Instituto Franco Basaglia, ONG que cuidava dos direitos dos usuários, e posteriormente com Abílio Tozzini, presidente da Associação de Moradores da Rua Lauro Müller, surgiu a ideia de colocar um bloco na rua. O nome foi escolhido por votação. Venceu a sugestão dada por um cliente do Pinel – Gilson Secundino, hoje atendido no Caps Franco Basaglia -, que disse: “se é pra fazer carnaval, sejamos audaciosos. Não vamos fazer carnaval só pra quem já pirou, e tá aqui no Pinel. Vamos pra rua brincar com quem ainda tá pirando. Tá pirando, pirado, pirou! Tá todo mundo junto”.
Para Wanderley, o nome é interessante sobretudo porque expressa o espírito da reforma psiquiátrica de promover integração social, que é também uma marca do democrático carnaval de rua. Além disso, afirma, também brinca com a suposta normalidade de quem nunca precisou de internação, mostrando que é tênue a fronteira que separa a loucura da razão.
“O bloco existe como uma modalidade de intervenção cultural cujo objetivo é desconstruir estereótipos sobre a loucura, comumente associada à ideia de periculosidade e de incapacidade de produzir e conviver em sociedade”, afirma.
Por fazer parte da Rede Carioca de Pontos de Cultura, o projeto conta com oficinas de artes carnavalescas que funcionam durante todo o ano: de composição e registro fonográfico, percussão e artes plásticas. Outras atividades, como rodas de samba e assembleias para a construção do desfile, proporcionam um espaço de convivência, trocas afetivas e experimentações estéticas.
“São visíveis os efeitos de estabilização para os usuários que se engajam ativamente no processo de construção do desfile. O coletivo propicia um sentimento de pertencimento, num ambiente de estímulo à criação, que produz novas identidades”, conta o psicanalista.
Embora a sede do bloco seja no Pinel, o coletivo é fruto do enlace de diversas instituições, como o Instituto de Psiquiatria da UFRJ (Ipub), a rede de Caps, sobretudo os Caps Franco Basaglia (Botafogo), Maria do Socorro (Rocinha) e Lima Barreto (Bangu), e a Associação de Moradores da Rua Lauro Müller. Há ainda uma parceria com o projeto de extensão Fora da Casinha: criação e ativação de redes, formação em arte e cultura, criado por professores universitários da UFRJ, UFF-Campos e UFRRJ.
Campanha para ajudar o Tá Pirando, Pirado, Pirou! a colocar o bloco na rua em 2019:
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vol.24, supl.1, 2017
Hospício e Psiquiatria na Primeira República: diagnósticos em perspectiva histórica
vol.17, supl.2, dez. 2010
Destaques em HCS-Manguinhos:
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“Eu não sou presa de juízo, não”: Zefinha, a louca perigosa mais antiga do Brasil, artigo de Debora Diniz e Luciana Brito (vol.23 n.1 jan./mar. 2016)
E ainda em HCS-Manguinhos:
Tenório, Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais: história e conceitos. Abr 2002, vol.9, no.1
Carrion, Carla Torres Pereira, Margotto, Lilian Rose and Aragão, Elizabeth Maria Andrade As causas das internações no Hospital Adauto Botelho (Cariacica, ES) na segunda metade do século XX. Dez 2014, vol.21, no.4
Almeida, Francis Moraes de. Descontinuidades e ressurgências: entre o normal e o patológico na teoria do controle social. Set 2013, vol.20, no.3
Facchinetti, Cristiana and Muñoz, Pedro Felipe Neves de Emil Kraepelin na ciência psiquiátrica do Rio de Janeiro, 1903-1933. Mar 2013, vol.20, no.1
Gama, Jairo Roberto de Almeida. A constituição do campo psiquiátrico: duas perspectivas antagônicas. Mar 2012, vol.19, no.1
Venancio, Ana Teresa A. Da colônia agrícola ao hospital-colônia: configurações para a assistência psiquiátrica no Brasil na primeira metade do século XX. Dez 2011, vol.18, suppl.1
Jabert, Alexander. Estratégias populares de identificação e tratamento da loucura na primeira metade do século XX:uma análise dos prontuários médicos do Sanatório Espírita de Uberaba. Mar 2011, vol.18, no.1
Facchinetti, Cristiana et al. No labirinto das fontes do Hospício Nacional de Alienados. Dez 2010, vol.17, suppl.2
Facchinetti, Cristiana, Cupello, Priscila and Evangelista, Danielle Ferreira Arquivos Brasileiros de Psiquiatria, Neurologia e Ciências Afins: uma fonte com muita história. Dez 2010, vol.17, suppl.2
Santos, Fernando Sergio Dumas dos and Verani, Ana Carolina Alcoolismo e medicina psiquiátrica no Brasil do início do século XX. Dez 2010, vol.17, suppl.2
Nunes, Sílvia Alexim. Histeria e psiquiatria no Brasil da Primeira República. Dez 2010, vol.17, suppl.2
Birman, Joel. A cena constituinte da psicose maníaco-depressiva no Brasil. Dez 2010, vol.17, suppl.2
Nunes, Everardo Duarte. Hollingshead e Redlich: a pesquisa sobre classe social e doença mental cinquenta anos depois. Mar 2010, vol.17, no.1
Arantes, Marco Antonio. Hospício de doutores v. 15, n. 1, Mar. 2008
Oda, Ana Maria Galdini Raimundo and Dalgalarrondo, Paulo História das primeiras instituições para alienados no Brasil. Dez 2005, vol.12, no.3
Jabert, Alexander. Formas de administração da loucura na Primeira República: o caso do estado do Espírito Santo. Dez 2005, vol.12, no.3
Paulin, Luiz Fernando and Turato, Egberto Ribeiro Antecedentes da reforma psiquiátrica no Brasil: as contradições dos anos 1970. Ago 2004, vol.11, no.2
Venâncio, Ana Teresa A. História do saber psiquiátrico no Brasil: ciência e assistência em debate. Dez 2003, vol.10, no.3
Venâncio, Ana Teresa A. Ciência psiquiátrica e política assistencial: a criação do Instituto de Psiquiatria da Universidade do Brasil. Dez 2003, vol.10, no.3
Tenório, Fernando. A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais: história e conceitos. Abr 2002, vol.9, no.1
Wadi, Yonissa Marmitt. Aos loucos, os médicos: a luta pela medicalização do hospício e construção da psiquiatria no Rio Grande do Sul. Fev 2000, vol.6, no.3
Engel, Magali Gouveia. As fronteiras da ‘anormalidade’:psiquiatria e controle social. Fev 1999, vol.5, no.3
Sobre o Tá Pirando, Pirado, Pirou!, leia também:
At Carnival, Where Challenging Normal Is the Norm – reportagem no New York Times
Como citar este post:
Bloco de carnaval põe Lima Barreto na luta antimanicomial, Blog de HCS-Manguinhos. Publicado em 2 de março de 2019. Acessível em http://www.revistahcsm.coc.fiocruz.br/bloco-de-carnaval-poe-lima-barreto-na-luta-antimanicomial/